O grito paraguaio
Paraguaios desafiam a pandemia e, desde a sexta-feira, 5 de março, têm realizado manifestações nas ruas de Assunção. Com as bandeiras azul, branco e vermelha amarradas ao corpo e cartazes pedindo vacinas, remédios para os pacientes com Covid e reclamando da corrupção, eles protestam em diversos pontos da capital do país, como o Congresso, a residência presidencial e a casa do ex-presidente Horacio Cartes, do Partido Colorado.
Sem contar com a organização dos partidos de oposição, os manifestantes ameaçam permanecer nas ruas “até a saída de Marito”, o apelido do presidente Mario Abdo Benítez. Reclamam de terem sido submetidos a medidas rigorosas de isolamento social durante meses a fio, sem que o governo tenha sido capaz de preparar o país para a pandemia. Até a quinta-feira, 11, a tensão já tinha derrubado quatro ministros. Entre eles estão o chefe da Casa Civil e o ministro da Educação. Mesmo assim, a despeito das trocas ministeriais, os paraguaios não desistiram de demonstrar sua insatisfação.
Em um país onde os leitos de UTIs para Covid estão com uma taxa de ocupação de 100%, é preciso acumular uma indignação descomunal para se aventurar a sair de casa para protestar. No Paraguai, boa parte da raiva se concentra na corrupção. O país é um dos quatro últimos no ranking regional da Transparência Internacional, ao lado de Venezuela, Bolívia e Guatemala. Quando a pandemia começou no ano passado, práticas antigas, enraizadas ao longo de décadas, atrapalharam ainda mais o combate à Covid.
Uma das queixas dos manifestantes é em relação ao roubo de medicamentos do Ministério da Saúde por funcionários públicos. No país, é comum que políticos desviem remédios dos depósitos dos hospitais para distribuir diretamente para a população, em troca de votos. A cena da vez foi flagrada no último dia 5, quando uma enfermeira, Eva Caje, pré-candidata a vereadora pelo Partido Colorado, foi filmada e denunciada por vizinhos entregando remédios que estavam em caixas do Ministério da Saúde. O descontrole dos inventários é tão grande que o país tem dificuldade para saber o que precisa ser comprado. Nas últimas semanas, hospitais do Paraguai constataram a falta de bloqueadores neuromusculares, os quais são indispensáveis para que se possa intubar uma pessoa com coronavírus. “Durante todo o ano de 2020, mesmo com a pandemia grassando, não foram realizadas licitações para comprar esses remédios. Muitas pessoas não puderam ser intubadas por causa disso”, diz a médica paraguaia Gloria Meza, presidente do Círculo Paraguaio de Médicos. “Há meses nós estamos avisando que iriam faltar remédios e nada foi feito. Agora estamos preocupados com o oxigênio, que também não foi adquirido.”
Logo no começo, o governo foi rígido ao decretar toques de recolher e fechar a fronteira com outros países, incluindo o Brasil. A promessa feita à população era a de que, enquanto o povo se fechava em casa, as autoridades teriam tempo para preparar a infraestrutura necessária para combater a pandemia. Nada aconteceu. Nesta semana, o Paraguai alcançou seu pico de casos e de mortes. Consultórios e corredores de hospitais estão sendo transformados em salas de UTI improvisadas. O governo comprou 4 milhões de doses de vacinas, mas até agora só recebeu 4 mil da russa Sputnik V. O Chile doou mais 20 mil.
Respondendo à pressão das ruas, o Partido Liberal Radical Autêntico, de oposição, com 29 cadeiras na Câmara dos Deputados, prepara-se para detonar um processo de impeachment do presidente Mario Abdo Benítez. Para afastá-lo, é necessário que 53 dos 80 deputados votem pela destituição, algo que só pode ser alcançado com a adesão de parte do Partido Colorado.
Com o presidente Marito nas cordas por causas desses problemas, a pergunta é se manifestações semelhantes poderiam se repetir no Brasil, onde o combate à pandemia por parte do governo federal tem sido outra catástrofe. Das 27 capitais, 25 estão com taxas de ocupação de UTI para Covid acima de 80% e o número de mortes diárias passou a marca de 2 mil nesta semana pela primeira vez desde a chegada do vírus ao país, há pouco mais de um ano.
De maneira geral, o Brasil acompanhou o declínio dos protestos populares em todo o mundo nos últimos meses. De acordo com o Instituto V-Dem, da Suécia, o ano de 2020 registrou o menor índice de manifestações em uma década. O medo da pandemia e a imposição de lockdowns conteve os manifestantes, que só saíram às ruas em 2020 em poucos países, como Belarus, Nigéria e Tailândia. No Brasil, algumas manifestações ocorreram em meados do ano passado, inspiradas nos protestos que ocorreram nos Estados Unidos contra a violência policial, mas o movimento logo perdeu força.
Na comparação com os paraguaios, os brasileiros também parecem nutrir uma esperança maior de que conseguirão superar a Covid. O fato ocorre por três fatores. O primeiro é que, aqui, mesmo com poucas vacinas à disposição da população até o momento, a campanha de imunização está mais adiantada do que no país vizinho, que com uma população de 7 milhões de pessoas só recebeu até agora 24 mil doses.
O segundo fator é que, enquanto o governo federal tem se mostrado claramente incompetente ao lidar com a ameaça, outros atores ocuparam o vazio de liderança que foi deixado, como os governadores. O terceiro e último componente é que o Brasil ainda não atingiu o mesmo grau de ocupação das UTIs do Paraguai, onde há um mês não restam leitos vagos. “Enquanto ainda existirem de 10% ou 20% dos leitos de UTI disponíveis, muitas pessoas ainda terão um pouco de esperança e evitarão se expor em manifestações. Mas, caso a ocupação chegue ao níveis do Paraguai, o fio de esperança pode sumir e o medo deixará de existir”, diz o economista Eduardo Moreira, criador do movimento Somos 70%, que surgiu nas redes sociais no ano passado como uma iniciativa suprapartidária de oposição a Jair Bolsonaro.
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