Cesar Olmedo/Agência BrasilManifestação em Assunção: com população de 7 milhões, o Paraguai só recebeu 24 mil doses de vacinas

O grito paraguaio

Contra a incompetência do governo no combate à pandemia, a população do Paraguai vai às ruas e coloca o presidente no canto do ringue. A reação serve de alerta para as autoridades brasileiras
12.03.21

Paraguaios desafiam a pandemia e, desde a sexta-feira, 5 de março, têm realizado manifestações nas ruas de Assunção. Com as bandeiras azul, branco e vermelha amarradas ao corpo e cartazes pedindo vacinas, remédios para os pacientes com Covid e reclamando da corrupção, eles protestam em diversos pontos da capital do país, como o Congresso, a residência presidencial e a casa do ex-presidente Horacio Cartes, do Partido Colorado.

Sem contar com a organização dos partidos de oposição, os manifestantes ameaçam permanecer nas ruas “até a saída de Marito”, o apelido do presidente Mario Abdo Benítez. Reclamam de terem sido submetidos a medidas rigorosas de isolamento social durante meses a fio, sem que o governo tenha sido capaz de preparar o país para a pandemia. Até a quinta-feira, 11, a tensão já tinha derrubado quatro ministros. Entre eles estão o chefe da Casa Civil e o ministro da Educação. Mesmo assim, a despeito das trocas ministeriais, os paraguaios não desistiram de demonstrar sua insatisfação.

Em um país onde os leitos de UTIs para Covid estão com uma taxa de ocupação de 100%, é preciso acumular uma indignação descomunal para se aventurar a sair de casa para protestar. No Paraguai, boa parte da raiva se concentra na corrupção. O país é um dos quatro últimos no ranking regional da Transparência Internacional, ao lado de Venezuela, Bolívia e Guatemala. Quando a pandemia começou no ano passado, práticas antigas, enraizadas ao longo de décadas, atrapalharam ainda mais o combate à Covid.

Uma das queixas dos manifestantes é em relação ao roubo de medicamentos do Ministério da Saúde por funcionários públicos. No país, é comum que políticos desviem remédios dos depósitos dos hospitais para distribuir diretamente para a população, em troca de votos. A cena da vez foi flagrada no último dia 5, quando uma enfermeira, Eva Caje, pré-candidata a vereadora pelo Partido Colorado, foi filmada e denunciada por vizinhos entregando remédios que estavam em caixas do Ministério da Saúde. O descontrole dos inventários é tão grande que o país tem dificuldade para saber o que precisa ser comprado. Nas últimas semanas, hospitais do Paraguai constataram a falta de bloqueadores neuromusculares, os quais são indispensáveis para que se possa intubar uma pessoa com coronavírus. “Durante todo o ano de 2020, mesmo com a pandemia grassando, não foram realizadas licitações para comprar esses remédios. Muitas pessoas não puderam ser intubadas por causa disso”, diz a médica paraguaia Gloria Meza, presidente do Círculo Paraguaio de Médicos. “Há meses nós estamos avisando que iriam faltar remédios e nada foi feito. Agora estamos preocupados com o oxigênio, que também não foi adquirido.”

Antonio Cruz/Agência BrasilAntonio Cruz/Agência BrasilO presidente Mario Abdo Benítez, do Partido Colorado: risco de impeachment
Outro problema é a incapacidade de o governo executar seus gastos. No início da pandemia, em 2020, o governo do Paraguai obteve um empréstimo de 1,6 bilhão de dólares para lidar com a crise sanitária. O Ministério da Saúde, contudo, só conseguiu executar 22% do seu orçamento. Uma lei de emergência foi promulgada para acelerar as compras governamentais, retirando entraves burocráticos. Surpreendentemente, em vez de agilizar os processos, tudo ficou mais lento. “O problema maior é que não há pessoas técnicas qualificadas para avançar com esses procedimentos, e a quantidade de serviço aumentou”, diz David Riveros García, diretor-executivo da ONG paraguaia Reacción, que monitora a corrupção no país. “A verdade é que não temos um funcionalismo público profissional no Paraguai, porque os cargos sempre foram preenchidos por critérios políticos.” No país, é frequente o entendimento de que, para conseguir um emprego público, é preciso ter a carteirinha do Partido Colorado.

Logo no começo, o governo foi rígido ao decretar toques de recolher e fechar a fronteira com outros países, incluindo o Brasil. A promessa feita à população era a de que, enquanto o povo se fechava em casa, as autoridades teriam tempo para preparar a infraestrutura necessária para combater a pandemia. Nada aconteceu. Nesta semana, o Paraguai alcançou seu pico de casos e de mortes. Consultórios e corredores de hospitais estão sendo transformados em salas de UTI improvisadas. O governo comprou 4 milhões de doses de vacinas, mas até agora só recebeu 4 mil da russa Sputnik V. O Chile doou mais 20 mil.

Respondendo à pressão das ruas, o Partido Liberal Radical Autêntico, de oposição, com 29 cadeiras na Câmara dos Deputados, prepara-se para detonar um processo de impeachment do presidente Mario Abdo Benítez. Para afastá-lo, é necessário que 53 dos 80 deputados votem pela destituição, algo que só pode ser alcançado com a adesão de parte do Partido Colorado.

Com o presidente Marito nas cordas por causas desses problemas, a pergunta é se manifestações semelhantes poderiam se repetir no Brasil, onde o combate à pandemia por parte do governo federal tem sido outra catástrofe. Das 27 capitais, 25 estão com taxas de ocupação de UTI para Covid acima de 80% e o número de mortes diárias passou a marca de 2 mil nesta semana pela primeira vez desde a chegada do vírus ao país, há pouco mais de um ano.

De maneira geral, o Brasil acompanhou o declínio dos protestos populares em todo o mundo nos últimos meses. De acordo com o Instituto V-Dem, da Suécia, o ano de 2020 registrou o menor índice de manifestações em uma década. O medo da pandemia e a imposição de lockdowns conteve os manifestantes, que só saíram às ruas em 2020 em poucos países, como Belarus, Nigéria e Tailândia. No Brasil, algumas manifestações ocorreram em meados do ano passado, inspiradas nos protestos que ocorreram nos Estados Unidos contra a violência policial, mas o movimento logo perdeu força.

Reprodução/ABC ColorReprodução/ABC ColorA população reclama da corrupção e do desvio de remédios para fins eleitorais
No Brasil, ocorreu uma politização dos cuidados sanitários, e a classe média, que normalmente é quem participa dos protestos e forma a opinião dos demais, aderiu aos apelos para ficar em casa”, diz o cientista político Creomar de Souza, da consultoria Dharma. “Além disso, o país vem de um desencanto com as manifestações que ocorreram desde 2013, porque elas não tiveram muitos frutos.

Na comparação com os paraguaios, os brasileiros também parecem nutrir uma esperança maior de que conseguirão superar a Covid. O fato ocorre por três fatores. O primeiro é que, aqui, mesmo com poucas vacinas à disposição da população até o momento, a campanha de imunização está mais adiantada do que no país vizinho, que com uma população de 7 milhões de pessoas só recebeu até agora 24 mil doses.

O segundo fator é que, enquanto o governo federal tem se mostrado claramente incompetente ao lidar com a ameaça, outros atores ocuparam o vazio de liderança que foi deixado, como os governadores. O terceiro e último componente é que o Brasil ainda não atingiu o mesmo grau de ocupação das UTIs do Paraguai, onde há um mês não restam leitos vagos. “Enquanto ainda existirem de 10% ou 20% dos leitos de UTI disponíveis, muitas pessoas ainda terão um pouco de esperança e evitarão se expor em manifestações. Mas, caso a ocupação chegue ao níveis do Paraguai, o fio de esperança pode sumir e o medo deixará de existir”, diz o economista Eduardo Moreira, criador do movimento Somos 70%, que surgiu nas redes sociais no ano passado como uma iniciativa suprapartidária de oposição a Jair Bolsonaro.

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