Um bigode na luta pela liberdade
Não há muito tempo, me deparei com o documentário "Zappa", lançado em 2020 e que escarafuncha a vida de um dos cantores e compositores mais indecifráveis e inescapáveis de toda uma geração. Pois Frank Zappa (foto), o americano dono de uma das mais incorrigíveis identidades visuais da música no século 20 (os cabelos longos aliados...
Não há muito tempo, me deparei com o documentário "Zappa", lançado em 2020 e que escarafuncha a vida de um dos cantores e compositores mais indecifráveis e inescapáveis de toda uma geração. Pois Frank Zappa (foto), o americano dono de uma das mais incorrigíveis identidades visuais da música no século 20 (os cabelos longos aliados a um bigode) teve uma das mais variadas e extensas carreiras da indústria musical, que nunca fizeram tanta fama quanto sua cara.
Há vários Frank Zappa por aí. Para os virtuosos da guitarra, ele é o deus por trás de dezenas de solos intrincados e de altíssima qualidade — minha favorita está em um de seus primeiros discos.
Para os estudiosos musicais, é o artista que viu o mundo todo ao contrário: no momento em que o rock começava a pensar um futuro megalômano e racional, sua música se inspirava na arte e na experimentação sonora mais ampla possível, unindo as guitarras aos experimentos modernos que John Cage e Edgar Varèse, seu grande ídolo, faziam na música clássica. Dali saiu algo muito difícil de ser definido: podia ser jazz, rock progressivo, música incidental, proto-punk, ou qualquer coisa que estivesse no meio e o definisse como um artista de música "fusion", termo que se tornaria popular em tempos mais recentes.
Para os que conhecem sua obra, ele era um crítico mordaz dos seus próprios tempos. Em 1968, menos de um ano após os Beatles cantarem "All You Need is Love" para todo o mundo, Zappa respondeu em "Oh No":
Com o seu amor você pode mudar
Todos os tolos
Todo o ódio
Eu acho que você provavelmente
Saiu pra almoçar
E, para os fãs, ele foi um artista mais morto que vivo: compositor imparável, ele lançou 62 discos e coletâneas durante a vida. Desde sua morte, em 1992, sua família já lançou outros 66 discos, a maior parte de conteúdo inédito.
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No entanto, uma cena "menos importante" no documentário mostra talvez a maior contribuição do músico para a indústria que ele se colocava de lado. "Menos importante" está em aspas porque, em um documentário de música, não parece que o clímax da história se daria numa sala de comissão do Congresso dos EUA.
Mas é exatamente o que acontece. A cena toda se passa em 19 de setembro de 1985, na Comissão de Comércio, Ciência e Transportes do Senado daquele país. O motivo é a existência de um novo grupo de pressão para tratar de censura em músicas consideradas violentas ou obscenas para crianças e jovens — o grupo parental, conhecido como Parents Music Resource Center (Centro de Recursos Musicais para Pais, ou PMRC em inglês) pressionou pela criação de um selo que existe até hoje, e cujo texto "PARENTAL ADVISORY" até hoje indica que o conteúdo deve ser (em tese) analisado pelos responsáveis antes de sua reprodução. Um fóssil da classificação indicativa.
Fundada pela então esposa de Al Gore, a PMRC nasceu como resposta a Darling Nikki, uma música de Prince que, logo na primeira estrofe, relata o seu encontro com uma moça usando uma revista para se satisfazer sexualmente. O pedido de revisão das letras passou a ser mais generalizado e chegou à 15 letras das bandas de glam rock que faziam sucesso na época, passando pelo pop de Cyndi Lauper, e servindo como recado ao recém-nascido hip hop.
O Congresso tentou mediar a questão e, no dia da audiência, três pessoas apareceram para depor: Dee Snider, o excêntrico vocalista da banda Twisted Sister; o cantor John Denver...e Zappa, que sozinho roubou a cena. Em um trecho (que foi depois lançado em disco pelo próprio Zappa, que você pode ouvir ao fim deste post), o cantor responde diretamente às demandas apresentadas pela PMRC:
"Ninguém às forçou a levar Prince ou Sheena Easton até suas casas. Graças à Constituição, elas são livres para comprar outras formas de música para as crianças delas. Aparentemente, elas insistem em comprar as gravações de artistas contemporâneos para apoiar a ilusão pessoal de sofisticação aeróbica", disse Zappa ao Congresso. "Senhoras, fiquem avisadas: o preço de compra de 8,98 dólares não a obriga a beijar o pé de um compositor ou cantor em troca de uma volta do disco na vitrola da sala."
Zappa atacou, com base no direito à liberdade de expressão absoluta americana, prevista na primeira emenda à Constituição, o excessivo zelo que estas mães estavam tentando impor ao que seus filhos iam consumir. Ao final, meio que todos venceram: as mães do PMRC, momentaneamente, ao ver seu selo se tornar uma regra no mercado; artistas não se viram impedidos de continuar a explorar temas como sexualidade, ocultismo e violência em suas obras. E o hip hop passou a ostentar com algum orgulho o selo de Parental Advisory — afinal de contas, eles queriam mesmo era explodir tudo.
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As mais de duas horas do documentário mostram a injustiça de só se aprofundar em uma das mais interessantes carreiras da música moderna quase três décadas após a morte por câncer de próstata, aos 52 anos.
No que é possível, reavivaram a luta contra a censura que Zappa empreendeu, não solitária mas destacadamente, em seus anos finais de vida. E lembraram como era difícil definir um artista que, por mais que tivesse 100 álbuns na carreira, apareceu na TV pela primeira vez tocando uma roda de bicicleta e, estranhamente, nunca deixou de soar assim. Dessa montanha de sons produzidas por ele, apenas uma chegou às paradas por um breve momento.
Se vivo estivesse, Zappa se passaria como um misógino de primeira categoria. Em 1979, no auge da luta de gênero, uma de suas músicas mais famosas falava de um jovem bem sucedido e respeitado pela sua macheza que se descobre gay, com ataques diretos à "liberação feminina que veio rastejando pela nação". Em outra, gravada em um monólogo durante um show, ele descreve a tristeza de ir para a balada atrás de alguém para pegar, as "mulheres bonitas que sempre tem amigas feias para parecer mais bonitas", e os riscos da música disco. Enfim, outros tempos.
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Comentários (1)
Carlos Renato Cardoso Da Costa
2024-08-11 13:24:49Zappa era gênio. Como tal também chutou muita bola fora, mas o que produziu de bom era muito bom. Além disso era uma autêntica estrela de rock, já que tinha nele a característica principal de uma: era sempre contra o mainstream. PS: o Dee foi o grande destaque das audiências do congresso. Esperava-se que rockstars fossem idiotas degenerados e ele apresentou-se inteligente e bem articulado, o que tirou prontamente força aos que queriam censurar os artistas e suas músicas.