Daniel Silveira e a Ordem de Mérito do Ressentimento
Ao indicar o deputado federal para receber a honraria da Biblioteca Nacional, a direita governista admite sua derrota
Daniel Silveira leu 832 livros. É o que ele mesmo informou a O Globo, em entrevista que deve ter concedido logo depois da cerimônia na qual foi agraciado com a Ordem de Mérito do Livro, na primeira sexta-feira do mês. A foto da matéria mostra o deputado federal do PTB já na rua, exibindo a medalha prateada em seu estojo. O rosto não traz o sorriso aberto que Silveira exibia ao lado de uma placa quebrada com o nome de Marielle Franco, na imagem que o lançou à notoriedade. Se naquele dia de 2018 ele estava exultante pelo atentado à memória da vereadora assassinada, na foto mais recente ele parece… como direi? Manso, pacificado, domesticado? Não: sereno! Sim, esta é a palavra, ainda que ela pareça incongruente com o personagem. Daniel Silveira tinha o semblante sereno de quem leu 832 livros.
O site da Biblioteca Nacional informa que a Ordem de Mérito do Livro pretende homenagear "elementos da sociedade por seus laços com o mundo da cultura e de amizade com a Biblioteca Nacional”. “Elementos da sociedade” – que expressão pitoresca! De imediato, me remeteu ao jargão policial: “o elemento foi visto em atitude suspeita”. Daniel Silveira, que em seu passado como policial militar colecionou 60 sanções disciplinares, agora é um elemento que tem "laços com o mundo da cultura” – o que tende a ser visto como atitude suspeita pela claque bolsonarista (esse pessoal da cultura não é sempre de esquerda?). Mas o bolsonarista típico, com seu desprezo pela imprensa, não deve estar informado nem das 60 sanções disciplinares, nem dos 832 livros.
Oitocentos e trinta e dois. A repetição começa a tornar o texto enfadonho, eu sei. Mas vai de novo: 832. Se insisto tanto no número, é porque ele me surpreendeu. Oito centenas não constituem nem de longe uma quantidade excepcional para um leitor da idade do deputado – 39 anos –, mas eu jamais imaginaria que ele houvesse passado de duas dúzias. O próprio deputado admirou-se com seu feito: “Tá vendo que loucura?”, disse a O Globo. Sim, loucura: 832 livros.
Ainda que ele houvesse lido dez ou vinte vezes mais, isso por si só não constituiria razão para que Silveira fosse homenageado pela Biblioteca Nacional (Jorge Luis Borges dizia encontrar mais razão para orgulho nos livros que lera do que nos livros que havia escrito – mas essa declaração só ficou famosa porque Borges é autor de Ficções e O Aleph). Por que mesmo resolveram dar a Ordem do Mérito do Livro para o deputado? O Globo fez essa pergunta para Daniel Silveira, que deu uma resposta honesta: “Não sei”.
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Outras figuras menores do bolsonarismo – como o também deputado Hélio Lopes, eterno papagaio de pirata do presidente – receberam a distinção que Daniel Silveira não soube explicar. Tampouco se sabe o que eles fizeram pela Biblioteca Nacional ou pela leitura no país. A premiação teve um nítido caráter de desforra contra a cultura, percebida pela direita governista como território hostil. Achincalhe deliberado, a entrega de medalhas deu vazão ao sentimento basilar da economia emocional do bolsonarismo.
Tornou-se lugar comum associar Bolsonaro e sua turma ao ódio, mas não é desse sentimento que eu falo. Concordo com o que o crítico Idelber Avelar diz no ótimo Eles em Nós (Record): o ódio não é uma “categoria iluminadora” para entender o bolsonarismo, pois não serve para distingui-lo de outras forças políticas brasileiras – "pelo menos não quando se olha a história do ponto de vista dos que foram objeto de ódio petista”, observa Avelar, com agudeza.
O motor emocional do bolsonarismo é o ressentimento.
O ressentimento bolsonarista é, ainda segundo Avelar, "uma rebelião da impotência e da amargura”. E, acrescento eu, o tal "mundo da cultura” com que Daniel Silveira teria laços é objeto do mais impotente e amargo dos ressentimentos. Os bolsonaristas percebem a arte e a cultura como terrenos dominados pela esquerda. Nisso, não estão de todo errados. O marxista Roberto Schwarz, em ensaio do fim dos anos 1960, já observava a curiosa contradição de um país sob o tacão de uma ditadura de direita no qual a esquerda detinha a hegemonia cultural. Envolvidos na mística da resistência à ditadura, os artistas desse período – em particular, os compositores da MPB – ainda hoje despertam reações hidrofóbicas entre os admiradores de Bolsonaro.
O governo confronta a cultura com atos simbólicos: Bolsonaro recusou-se a assinar o diploma do Prêmio Camões concedido a Chico Buarque; a Fundação Palmares retirou Gilberto Gil (entre outros) de uma lista de negros célebres do Brasil. No circo pobre armado na Biblioteca Nacional, o filistinismo militante foi mais agressivo em seu ataque a uma instituição referencial das letras brasileiras, constrangida ao vexame de conceder a Ordem do Mérito do Livro a figuras desprovidas de mérito. Estão certos Marco Lucchesi, Antônio Carlos Secchin e demais escritores e intelectuais que recusaram a medalha. Não se pode referendar a farsa.
Feitas todas as contas – inclusive a dos livros já lidos –, nem a distribuição de medalhinhas para heróis bolsonaristas conseguiu ultrapassar a impotência amarga que é própria dos ressentidos. Ao reconhecer que o melhor “elemento" que tem a apresentar no campo cultural é Daniel Silveira, a direita governista admite sua derrota. Já parecem enterradas as esperanças de dois anos atrás, quando o então secretário da Cultura, Roberto Alvim, anunciava uma verdadeira renascença conservadora, postulando uma arte “heroica e nacional” que estaria “vinculada às aspirações urgentes de nosso povo”. Alvim acabou demitido porque trechos dessa fala tinham incômodos pontos em comum com um discurso de Goebbels. Até hoje, a nova arte com que ele sonhava não deu as caras. A intelectualidade alinhada à Bolsonaro é tão nula em arte quanto os milicos com cargos no governo são ruins em gestão pública.
Isso significa que arte brasileira está toda na mão da esquerda? Não. Existem bons artistas “de direita” atuando no país. Eu mesmo conheço pelo menos uma dúzia deles (parece pouco, mas considere que sou um tipo antissocial, verdadeiro anacoreta urbano, que já não saía de casa antes da pandemia), em áreas diversas: música, teatro, literatura, artes plásticas. O que “de direita” quer dizer aqui? Apenas que esses artistas compartilham de ideias e opiniões muito razoáveis, que no entanto são anátema para boa parte da esquerda: a democracia representativa precisa ser defendida; Cuba e Venezuela são ditaduras; déficit público é um problema sério e não uma ficção criada pelos "neoliberais"; não houve golpe no Brasil em 2016; Lula não é infalível.
Esses artistas jamais farão um Bacurau conservador. Ainda bem.
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Depois de admitir que não sabia por que havia sido homenageado pela Biblioteca Nacional, Daniel Silveira aventou uma hipótese a O Globo: “Talvez pela causa que eu defenda”. Não esclareceu que causa é essa, mas suponho que se trate da liberdade de expressão, princípio que Bolsonaro defende no palanque mas enxovalha no Planalto – seu governo já tentou intimidar jornalistas, cartunistas e outros críticos judicialmente. De quebra, Bolsonaro e Silveira são admiradores da ditadura militar, regime que censurou as artes e a imprensa.
A liberdade de expressão, coitada, apanha de todo lado. Está aí Lula aventando seu rancoroso projeto de “regular" a imprensa quando voltar ao poder. E o STF acaba de censurar o PCO, partido nanico da extrema esquerda, por seus “ataques à democracia” – vale dizer, seus ataques ao próprio STF (Crusoé, aliás, publicou um excelente artigo do advogado André Marsiglia Santos sobre esse caso). Foi essa sabedoria corporativista que concedeu a Daniel Silveira o estatuto de mártir da liberdade de expressão.
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Tiros, tiros à mancheia! Um dia antes do homem que leu 832 livros receber sua medalha, Bolsonaro, em sua live semanal, afirmou que Lula, se vencer a eleição, transformará clubes de tiro em bibliotecas. Desajeitada, a crítica ao adversário quase passou por lisonja. Bolsonaro parece ter percebido isso, pois logo insinuou que leitura não é o negócio do Lula.
O paralelo desconjuntado entre livros e armas obedece ao mesmo sistema de valores que julgou adequado conceder a Daniel Silveira a medalha da Biblioteca Nacional.
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Eu não conseguiria contar quantos livros já li na vida. Tenho apenas a dolorosa consciência dos inúmeros livros que não li – possíveis maravilhas que eu talvez morra sem conhecer.
A contabilidade miúda de Silveira – exatos 832 livros – revela um homem insensível à angústia e ao maravilhamento que a biblioteca dos séculos suscita no verdadeiro leitor. Daniel Silveira conta os livros que lê como deve contar as repetições que faz no supino de sua academia. Ou como hoje contaria seus dias na prisão se Bolsonaro não houvesse lhe concedido o indulto.
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Comentários (10)
Vera Lucia Kirdeiko
2022-07-12 21:50:20Ótimo lê-lo neste espaço
ADIR
2022-07-12 11:55:29Maravilhoso texto que muitos, de todos os matizes ideológicos não entenderão, ou não conseguirão chegar ao final. Triste Brasiu"
Julio
2022-07-11 19:14:26832. Eu gostaria de saber quantos lápis de cor foram necessários para colorir todos esses 832 livros.
Elcio Morais de Oliveira
2022-07-11 18:13:38Perfeito!
David
2022-07-11 14:58:50Fiz um censo dos meus livros LIDOS e cheguei na casa dos 157. É bom fazer esse tipo de levantamento para se ter uma dimensão de quão pouco a gente lê, mesmo assim, creio que 80% dos brasileiros chegarão ao final da vida sem ter lido 100 livros.
Franco
2022-07-11 14:49:02A morte do imbecil petista é o resultado de anos de ódio semeado por eles mesmo. Agressões em greve, desrespeito aos contrários, boicote aos governos adversários, Agressões a estudantes não petistas nas universidades públicas. É o acúmulo de tudo. Vão pagar caro.
Elaine
2022-07-11 13:48:55Quantos livros será que Incitatus( cavalo de Calígula ) leu para ter garantida a indicação de cônsul e inúmeras condecorações ? Certamente se este animal leu , não se deu ao trabalho de contar ... pois a vida lhe sorria generosa em berço esplêndido em meio a louvações acima do bem e do mal . Qualquer semelhança não é mera coincidência .
VARLICE
2022-07-11 12:53:55Muito bom texto! Parabéns! Assim como você, lamento de antemão todos os livros que deixarei de ler: ficarão para a próxima reencarnação.
guilherme
2022-07-11 12:31:22Perfeito! Texto claro, informativo, equilibrado. Leitura que poderia socorrer-nos, brasileiros, mas que, por não apelar às paixões dos populistas, infelizmente não deverá ter a merecida repercussão.
Silvia
2022-07-11 12:24:23👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼