Ao questionar o TPI, Lula ataca o direito internacional e a tradição diplomática brasileira

O presidente Lula afirmou durante viagem à Índia que o Brasil e outros países emergentes se prejudicam por terem assinado o Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional, o TPI. A investida contra o TPI ocorreu depois de Lula dizer, no sábado, que russo Vladimir Putin não será preso se vier ao Brasil no ano que vem para a cúpula do G20. O TPI emitiu um mandado de prisão contra Putin por crimes de guerra e o Brasil, sendo signatário do TPI, é obrigado a prendê-lo caso o russo pise no país (Putin é acusado de sequestrar crianças ucranianas e levá-las para a Rússia, onde o presidente permitiu que elas ganhem nova cidadania).

Seguem três frases de Lula sobre o TPI:

“Não sei se a Justiça brasileira vai prender [o Putin]. Isso quem decide é a Justiça, não é o governo, nem o Parlamento. É a Justiça que vai decidir. Eu inclusive quero estudar muito essa questão desse Tribunal Penal porque os Estados Unidos não é signatário dele. A Rússia não é signatário dele. Então eu quero saber por que o Brasil virou signatário de um tribunal que os Estados Unidos não aceita. Por que nós somos inferiores e temos de aceitar uma coisa?”

“É um absurdo. São os países emergentes os signatários de umas coisas que prejudicam eles mesmos. Então eu vou dar uma pensada nisso direitinho. Mas é a Justiça que toma essa decisão. Se o Putin decidir ir ao Brasil quem toma a decisão se vai prender ele ou não é a Justiça, não é nem o Congresso Nacional.”

“Eu não estou dizendo que vou sair de um tribunal. Eu só quero saber, e isso só me apareceu agora. Eu nem sabia da existência desse tribunal. Só quero saber por que que os Estados Unidos não é signatário. Por que a Índia não é signatário. Por que a China não é signatário. Por que a Rússia não é signatário. E por que o Brasil é signatário. Eu quero saber qual é a grandeza que fez o Brasil tomar essa decisão de ser signatário. Só isso que eu quero saber. Me parece que os países do Conselho de Segurança da ONU não são signatários. Só os bagrinhos.”

A grandeza que levou o Brasil a integrar o Tribunal Penal Internacional é fácil de entender. Com sede em Haia, a corte tem como missão a de impedir que pessoas que cometem crimes de guerra ou crimes contra a humanidade fiquem impunes. É, portanto, um dos principais alicerces do direito internacional e da defesa dos direitos humanos no mundo. As acusações e as penas decretadas são todas contra indivíduos, e não contra países ou grupos. O TPI não é parte da ONU e os países que querem fazer parte dele precisam aderir voluntariamente ao Estatuto de Roma, firmado em 1998.

A adesão brasileira não foi feita às escondidas. Muito pelo contrário. O Brasil participou da conferência internacional que discutiu o Estatuto e estava entre os signatários originais. O Congresso Nacional, como representante do povo brasileiro, referendou o texto. Foi somente após o aval dos parlamentares que o presidente Fernando Henrique pôde ratificá-lo, em 2002. O Supremo Tribunal Federal entendeu que o Estatuto está abaixo da Constituição, e acima de toda e qualquer lei.

“A aprovação do Estatuto de Roma passou pelos representantes do povo brasileiro, na medida em que referendaram a assinatura e o texto do tratado, como preconiza o artigo 49, inciso I da Constituição. Sem o referendo parlamentar, o presidente não poderia ter ratificado o instrumento internacional, que depende sempre do equilíbrio dos poderes. Dizer que ser signatário do TPI é um gesto de subdesenvolvimento é uma das coisas mais insanas que eu já ouvi, até porque o tribunal tem competência, inclusive, para julgar crimes cometidos em sua maioria em regimes ditatoriais. A política externa deste mandato do Lula é a mais pavorosa da história da nossa República. Nosso presidente está dizendo que Cortes que punem pessoas que cometeram crimes de guerra não deveriam existir“, diz Dorival Guimarães Pereira Júnior, professor de direito internacional e coordenador da escola de direito da Skema Business School Brasil, em Belo Horizonte. “Não é possível para o Lula revogar um ato desses, sem passar pela anuência do Congresso. Isso só poderia acontecer em uma ditadura. Insinuar algo assim é assustador e afrontoso à Constituição, até mesmo diante do histórico da atuação do Ministério das Relações Exteriores nos primeiros governos do Lula.”

O embaixador Paulo Roberto de Almeida, colunista de Crusoé, também entende que Lula, ao questionar a legitimidade do TPI, vai contra a tradição diplomática do Brasil. “Os diplomatas que servem o presidente se esqueceram das lições que tomaram no Instituto Rio Branco? Justo o patrono da diplomacia, que dizia que a política externa brasileira seria fundada no estrito respeito ao direito internacional? De repente, tudo isso deve ser deixado de lado? Pela imposição ignorante de um megalomaníaco?“, diz Almeida. “Essas frases mostram um cenário pior do que eu estava pensando. Lula é um desrespeitador serial do direito internacional e dos valores e princípios da diplomacia brasileira.”

"É um absurdo, são os países emergentes signatários de umas coisas que prejudicam eles mesmos. Vou dar uma pensada nisso direitinho", diz @LulaOficial em manifestação contra o Tribunal Penal Internacional, que ameaça Vladimir Putin de prisão. https://t.co/tsbk0fs6wx pic.twitter.com/FpmSTNGtac

— O Antagonista (@o_antagonista) September 11, 2023