O judicialismo como rebaixamento da política
Em vez de trabalhar com o Congresso para fazer política pública, governo fez dobradinha com Flávio Dino, do STF
Quando Flávio Dino foi indicado para ocupar uma cadeira no STF, não achei que aquele fosse um movimento natural. Explico. Lula é o que se chama de um “líder mangueira”, em uma referência à árvore que, de tão frondosa, não deixa nada crescer embaixo. Traduzindo, o líder petista não é de promover pessoas que possam concorrer com ele por brilho e atenção.
À época, partidários petistas diziam que levar Dino para o STF era uma forma de retirá-lo da corrida sucessória. Mas já naquela época esse argumento fazia pouco sentido, porque Dino não estava sendo enviado para uma embaixada no exterior, mas para o centro do picadeiro político de Brasília.
Considerando o papel central do Judiciário no mais amplo leque de decisões políticas, quem disse que um ministro não pode aspirar a disputar a Presidência da República? Lembrando que tanto Nelson Jobim como Joaquim Barbosa já frequentaram o rol dos presidenciáveis, com esse último chegando a ter 10% das intenções de voto.
Continuando minhas investigações sobre as razões de Lula na escolha de Dino, conversei com um advogado membro do famoso grupo Prerrogativas, com grande ascendência sobre o governo atualmente.
Ele explicou que Lula queria um político que fizesse frente ao poder e à gestão política que Gilmar Mendes faz do corpo de ministros. O presidente estaria, portanto, buscando um reequilíbrio político do STF.
Será? Gilmar Mendes não milita na oposição e teve articulação importante na reabilitação eleitoral e política de Lula. Além disso, o excesso de independência de Dino, causa de estranheza, continua presente como fator que não se encaixa no perfil de nomeações que o presidente costuma fazer.
A interferência de Dino na sistemática da distribuição das emendas parlamentares e na questão das queimadas jogou mais lenha nessa fogueira. A saber, o ministro paralisou a execução de despesas ordenadas pelo Congresso até que se ache um balanço mais favorável ao Executivo e ordenou a retirada de gastos para o combate de incêndios.
Se, no primeiro caso, pode-se argumentar que se trata de um impasse institucional, no qual o STF tenta fazer alguma arbitragem, pode-se admitir que faz parte do jogo. No segundo, no entanto, há uma novidade.
Utilizando-se de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF, ajuizada pela Rede contra Jair Bolsonaro em 2020, para obrigar o então presidente a apresentar um plano de combate aos incêndios no Pantanal e na Amazônia, Dino fez política pública, criando crédito extraordinário, tirando despesa da meta fiscal e obrigando recrutamento e ação do governo.
Foi noticiado em Brasília que a ação de Dino foi vista como uma concorrência em relação ao Planalto, uma espécie de crítica velada à incapacidade de gerir esta crise. Além disso, estranhou-se que Lula não tenha pedido esse crédito extraordinário ao Congresso, que não teria problema nenhum em ceder o dinheiro como aconteceu no caso das enchentes no Rio Grande do Sul.
Meu primeiro impulso foi interpretar esses movimentos como uma disposição de Dino fazer um jogo próprio, buscando protagonismo e se colocando, por que não, como uma alternativa na sucessão de Lula em 2026 ou em 2030. No entanto, o envolvimento da Advocacia-Geral da União, AGU, em todo o processo indica uma parceria entre o presidente e o ministro.
Talvez a maneira correta de ler esse episódio é permanecer na superfície. O Planalto preferiu contar com o STF a trabalhar com o Congresso para fazer política pública. Mais uma vez, criou um fato consumado – tirar uma despesa da meta – para só depois ir buscar uma foto com Arthur Lira e Rodrigo Pacheco. Assim, o Judiciário vai esticando a corda e se aprofundando em decisões típicas de governo, vai ganhando know how e normalizando o papel de tomar decisões sem passar pelo controle popular representado pelo parlamento.
Joga-se luz, portanto, sobre o papel que Lula atribuiu a Dino. Consolida-se um modelo político no qual os poderes são tutelados pelo Judiciário – que recebe uma missão muito maior que qualquer outra inicialmente pensada.
Joguem fora toda a conversa que vira e mexe ministros plantam na imprensa sobre autocontenção. A ordem é avançar num desenho de judicialismo – que sequer é de coalizão – que joga crescentemente as principais decisões do país nas mãos de pouquíssimas pessoas e rebaixa a política.
Leonardo Barreto é cientista político e sócio da I3P Risco Político
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