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O juiz de Flávio

Quem é o magistrado linha-dura encarregado das investigações sobre o primogênito do presidente da República
23.05.19

“Está para nascer homem que irá me intimidar”. Endereçada a deputados federais de esquerda que acionaram o Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, para contestar a decisão de prender preventivamente 23 jovens detidos durante as manifestações contra a Copa do Mundo no Rio de Janeiro, a frase é do juiz Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau, que ganhou mais fama na semana passada ao autorizar a quebra dos sigilos fiscal e bancário do senador Flávio Bolsonaro, de seu ex-motorista Fabrício de Queiroz e de mais 93 pessoas e empresas.
A frase do juiz, de julho 2014, revela um pouco do perfil do magistrado de cabelos e cavanhaque negros e conhecido por decisões vistas como “duríssimas” por advogados. Antes alvos da esquerda, Itabaiana e sua caneta pesada são vistos agora como um trunfo pelos partidos da oposição, uma vez que o desfecho do processo conduzido por ele poderá ter reflexos nos rumos do governo do pai do senador, o presidente Jair Bolsonaro.

Flávio Itabaiana entrou para o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em 1995 e é titular da 27ª Vara Criminal desde 2005. Antes de se formar em Direito em 1989 pela Universidade Cândido Mendes, ele já havia se graduado em engenharia elétrica. Não muito afeito ao relacionamento com a imprensa, o juiz é classificado por advogados que atuam no tribunal como alinhado aos chamados “punitivistas”, por causa penas altas impostas aos que sentam no seu banco dos réus.

Uma advogada que já teve clientes condenados por Itabaiana conta um detalhe curioso do dia a dia das audiências na vara do juiz. Segundo ela, o magistrado se vale de um código para sinalizar aos funcionários que é preciso chamar a polícia porque ordenará a prisão do réu. “Pode trazer um café bem quentinho” é a senha. Logo após a frase, à primeira vista despretensiosa, policiais são convocados à sala. E o réu, instantes depois, sai de lá preso. Itabaiana nega a fama de juiz durão. Diz que é apenas justo. “Sou um juiz justo, que julga de acordo com a prova dos autos”, diz ele, em resposta por escrito a algumas perguntas enviadas por Crusoé.

O juiz rechaça a divisão de magistrados entre punitivistas e garantistas. Diz ele: “Não concordo que os magistrados sejam divididos entre punitivistas e garantistas. Como você também perguntou em qual lado me colocaria, minha resposta é em nenhum deles, já que, respeitando os princípios do contraditório e da ampla defesa, procuro aplicar a lei ao caso concreto, inclusive, na hipótese de condenação, individualizando a pena do condenado de acordo com os seus antecedentes criminais e as demais circunstâncias judiciais, bem como de acordo com as circunstâncias agravantes e atenuantes e as causas de diminuição e de aumento da pena”.

Fátima Meira/Futura Press/FolhapressFátima Meira/Futura Press/FolhapressFlávio Bolsonaro: caso está na primeira instância porque não guarda relação com o mandato de senador
O juiz listou alguns dos processos de repercussão que passaram por seu gabinete. Um deles resultou na condenação de traficantes e policiais militares cariocas envolvidos no caso conhecido como “Ladeira dos Tabajaras”. A investigação teve início em 2005, após uma senhora de 80 anos gravar da janela de sua casa o movimento de traficantes, olheiros e PMs envolvidos no tráfico de drogas na via que liga Copacabana ao bairro de Botafogo, na zona sul do Rio. A idosa – chamada pelo nome fictício de Dona Vitória – entregou 22 fitas com cerca de 33 horas de imagens de crimes sendo praticados a céu aberto. As condenações desse caso saíram ainda em 2006, um ano após o início da investigação. Itabaiana condenou 17 civis e nove militares que apareciam nas imagens.

Itabaiana também lembra da condenação da mãe do traficante Jean Piloto, chefe do tráfico no Morro da Pedreira, na zona norte do Rio. “(Ela) foi processada por guardar em sua residência um fuzil com mira telescópica e uma cobra”, explica o magistrado. Entre os processos mais conhecidos citados pelo juiz, o único que resultou em absolvição foi o que envolveu a ex-nadadora Rebeca Gusmão. Flagrada no exame antidoping dos jogos Pan-Americanos do Brasil, em 2007, a atleta foi acusada de falsidade ideológica após a descoberta de que os dois testes realizados por ela continham DNAs diferentes. Ao fim do processo, o juiz entendeu não haver provas suficientes para a condenação.

Integra o rol, ainda, o processo contra “black blocks” que saíram às ruas em 2014, durante protestos contra a Copa do Mundo no Brasil. Itabaiana, à época, entrou na mira dos defensores dos direitos humanos e partidos de esquerda ao ordenar a prisão preventiva 23 jovens detidos durante as manifestações. Em dezembro de 2014, o juiz chegou a gritar com dois deles durante uma audiência na 27ª Vara. “Vocês não estão na rua. Quem manda aqui sou eu”, disse Itabaiana após um dos réus se exaltar na sala. Em 2018, todos os que haviam sido detidos já estavam condenados, com penas de até sete anos de prisão por crimes como associação criminosa e corrupção de menores.

Outro caso de repercussão nacional resultou na condenação do ex-diretor da Petrobras Jorge Zelada e de João Augusto Henriques, apontado como operador do MDB, por fraudes durante licitação milionária vencida pela Odebrecht. Na decisão, Itabaiana classificou a conduta de Zelada, preso na Lava Jato, como reprovável. Disse que ele não trilhava “o caminho da ética e da honestidade”. A rigidez do juiz aparece no despacho quando ele cita o fato de Zelada ter uma condição financeira elevada como fator para sua pena ser superior a de pessoas que praticam o mesmo crime, mas com condição social adversa. “A sentença foi proferida em janeiro de 2016 e Jorge Luiz Zelada e João Augusto Rezende Henriques receberam pena máxima”, lembra.

Reprodução/SBTReprodução/SBTEx-colega de quartel de Jair Bolsonaro, Fabrício Queiroz foi trabalhou com Flávio Bolsonaro na Assembleia do Rio
De volta ao caso que trouxe Itabaiana mais uma vez aos holofotes, a decisão do magistrado que autorizou as quebras de sigilo na investigação decorrente do relatório do Coaf, reveladora das operações suspeitas de Fabrício Queiroz e de outras dezenas de funcionários e ex-funcionários da Assembleia do Rio, marca uma nova fase da investigação conduzida pelo Ministério Público fluminense para apurar a existência de um esquema conhecido como “rachid” – quando servidores de gabinetes são levados a repassar parte de seus salários ao chefe.

O documento do Coaf mostrou que, dos 605 mil reais que entraram na conta de Queiroz, cerca de um terço, 216 mil, foi depositado em espécie. Além da atipicidade no valor e na forma dos depósitos, chamou a atenção dos investigadores o fato de outros funcionários de Flávio repassarem mensalmente valores para Queiroz. Boa parte dessas transferências se dava em datas próximas ao dia de pagamento na Alerj. “O que evidencia a possibilidade de que, além das transferência bancárias realizadas diretamente entre servidores identificados pelo Coaf, outros assessores ligados ao ex-deputado estadual, de forma generalizada, sacavam mensalmente parte de seus vencimentos e repassavam em espécie a Fabrício de Queiroz”, escreveram os promotores ao pedir as quebras de sigilo ao juiz.

Os saques na boca do caixa feitos na conta de Queiroz, por sua vez, perfazem 324 mil reais. Eles se somam aos 24 mil reais que pagaram um cheque para a primeira-dama Michele Bolsonaro, que era assessora parlamentar de Jair Bolsonaro à época. Muito embora todas essas informações estivessem em poder do Ministério Público desde janeiro de 2018, apenas em dezembro, após o jornal O Estado de S.Paulo revelar o documento do Coaf, a investigação começou a andar mais rapidamente. Desde então, os promotores vêm tentando ouvir Queiroz e Flávio Bolsonaro, mas até hoje não conseguiram. Queiroz limitou-se a se manifestar por escrito.

Nesse cenário, os investigadores traçaram um plano B. Decidiram avançar sobre as transações financeiras de todos os citados no documento, para mapear possíveis relações que confirmem de forma inequívoca o retorno dos valores dos pagamentos a Alerj para as contas de Queiroz e de Flávio Bolsonaro. Começaram a mapear também as transações imobiliárias realizadas pelo filho do presidente.

Divulgação/AlerjDivulgação/AlerjO plenário da Alerj: investigações sobre o “esquema rachid” também miram outros parlamentares, incluindo o atual presidente da casa, André Ceciliano, do PT
Ao pedir acesso aos dados fiscais e bancários de Flávio, o MP diz que o agora senador lucrou 3 milhões de reais com compra e venda, entre 2010 e 2017, de 19 apartamentos e salas comerciais no Rio. As transações somam 9,4 milhões. A suspeita é que os valores desviados da Alerj tenham sido lavados nas transações imobiliárias. Para conseguir provar essas teses, era preciso ter acesso aos sigilos bancários de todos.

Mesmo com receio de não conseguir autorização da Justiça, os promotores do Grupo de Atuação Especializada no Combate à Corrupção, o Gaecc, optaram por enviar ao juiz Flávio Itabaiana um pedido mais amplo, que incluiu não só os alvos do Coaf, mas também aqueles que negociaram os imóveis com Flávio e até sua mulher, Fernanda Antunes Figueira Bolsonaro. Paralelamente, foram abertas investigações sobre outros parlamentares envolvidos nas transações suspeitas listadas pelo Coaf. É o caso do atual presidente da Alerj, André Ceciliano, do PT.

A decisão de Flávio Itabaiana sobre o caso envolvendo Queiroz e Flávio Bolsonaro, datada de 24 de abril, não só reafirmou o peso de sua caneta como surpreendeu alguns dos envolvidos na investigação. Além de autorizar o acesso a todos os dados bancários e fiscais de 85 pessoas e empresas, o juiz acolheu outro pedido do MP para que a Receita Federal envie todas as notas fiscais emitidas em nome do senador. Com esses dados, será possível, por exemplo, descobrir se Queiroz se valia dos valores repassados por funcionários da Alerj para pagar despesas do primogênito de Bolsonaro e de seus familiares.

Desde a expedição da ordem do juiz, as informações sigilosas sobre as movimentações bancárias do filho de Bolsonaro e de seus funcionários começaram a ser enviadas para o Ministério Público. A partir de agora, os promotores vão se debruçar sobre os dados em busca do caminho do dinheiro que saiu dos cofres da Alerj, em tese para pagar funcionários, mas que foram parar na conta de Queiroz. Nos próximos meses o juiz terá que tomar outras decisões. A depender do que aparecer nas quebras de sigilo, e do que ele decidir, certamente passará a incluir entre seus críticos não apenas os militantes de esquerda e os advogados, mas também de militantes de direita que apoiam o governo do pai de Flávio Bolsonaro.

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