National ArchivesHenry Kissinger: falta um diplomata do seu naipe nas negociações sobre a guerra na Ucrânia

Se eu quiser falar com o Sul Global, telefono para quem?

Essa entidade diáfana e praticamente fantasmagórica existe, apenas não tem personalidade ou representante definidos
25.05.23

Meio século atrás, quando o grande nome da diplomacia americana e mundial Henry Kissinger – o Mister K – pontificava sobre Vietnã, China, Oriente Médio e Chile, havia uma preocupação entre as grandes potências ocidentais (já organizadas no G7), sobre como efetuar a coordenação entre elas para assuntos não exclusivamente econômicos. Nessa época, a Europa enfrentava uma longa fase de “euroesclerose” e Kissinger exercia a chamada “shuttle diplomacy”, fazendo viagens rápidas entre duas ou mais capitais para extinguir alguma fogueira preocupante. Kissinger não sabia como mobilizar os principais líderes europeus para associá-los a uma ou outra de suas missões “pacificadoras” (ou guerreiras, segundo os casos). Indagado por que empreendia sozinho todas aquelas missões desafiadoras para qualquer diplomata experiente, ele costumava dizer: “Se eu quiser falar com a Europa, eu telefono para quem?”.

De fato, a Europa ocidental – tanto a então Comunidade Europeia, quanto outros países membros da Otan – não possuía um representante definido para negociações diplomáticas complexas, pois as instâncias comunitárias ainda não tinham evoluído no plano institucional para designar os equivalentes dos “presidentes”, “porta-vozes” ou “chanceleres” dos Estados nacionais. Ela fez progressos, desde então, e já consegue falar de uma voz única (ou quase), como no caso da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia. Hoje, o secretário de Estado, ou qualquer outro chanceler “externo”, sabe a quem telefonar quando quiser falar com a Europa, ou com qualquer outra potência ou Estado membro da ONU.

Essa mesma preocupação da velha raposa que era o Kissinger dos anos 1970 se manifesta atualmente quando alguém (geralmente um acadêmico, ou político) fala desse tal de “Sul Global”. Essa entidade diáfana e praticamente fantasmagórica existe, apenas não tem personalidade ou representante definidos. O chamado Sul Global, no entanto, não é novo, aliás, é eterno, existindo em todas as épocas, geralmente no hemisfério sul, como fica geograficamente evidente pela própria designação. Essa configuração bonita e pretensiosa – quando se fala de um “Sul Global” dá a impressão de algo grandioso e muito relevante – já existiu sob a forma de colônias europeias, depois de “países subdesenvolvidos” ou, numa reencarnação mais simpática, “em desenvolvimento”, alguns deles ascendendo como “economias emergentes” (os tigres asiáticos, por exemplo), ou, os mais infelizes, sendo rebaixados à categoria de “menos desenvolvidos” (isto é, os “super pobres”), com muito poucas variações no que se refere à divisão entre todos eles e os “países desenvolvidos”, antigas metrópoles coloniais ou “potências hegemônicas”, isto é, imperialistas, por definição.

Nada disso é novo na história da humanidade, pois a divisão entre centro e periferia é básica na evolução histórica das sociedades mais ou menos organizadas sob a forma de Estados soberanos e as comunidades humanas sujeitas a um tipo qualquer de dominação. Quando o sistema internacional de cooperação entre Estados soberanos se consolidou no pós-Segunda Guerra, a ONU mantinha uma divisão quadripartite: os países desenvolvidos, os em desenvolvimento, os socialistas e a China, sempre um “grupo à parte”. A segunda categoria, sempre reclamando algum tratamento de favor, mobilizou-se nos anos 1950 e 60 para a reforma do tratamento igualitário concedido a todos eles em Bretton Woods. Em 1944, não se fazia nenhuma distinção entre todos eles (e de socialista só havia a União Soviética, que participou da conferência que criou o FMI e o Banco Mundial, mas não aderiu a essas entidades do capitalismo).

As demandas para a reforma do Gatt e do sistema de cooperação ao desenvolvimento focavam na recusa do tratamento igualitário e da reciprocidade estrita, em favor de um tratamento diferencial para os “subdesenvolvidos” ou “em desenvolvimento”, que passaram a ser agrupados no Grupo dos 77, com a criação da Unctad (a conferência das Nações Unidas para comércio e desenvolvimento). Minhas passagens por diversas entidades multilaterais foram marcadas por intensas discussões no interior do G77 (e dentro dele, o Grulac, o subgrupo latino-americano) e “contra” o Grupo B, dos “desenvolvidos” (e dentro dele os europeus da antiga CEE, que demoravam horas para se concertarem e, depois, buscarem uma postura unificada com o resto dos “ricos”). As discussões entre os países pobres e emergentes não eram menos acaloradas e demoradas, mas como era preciso contemplar os “interesses nacionais” de todos os membros do G77 (que ascendeu a mais de 120 integrantes), a postura negociadora adotada era, ordinariamente, a mais radical possível, ou a mais confusa, o que frequentemente também ocorria entre americanos, europeus e japoneses. Não foram poucas noites atravessadas em discussões intermináveis em torno de um conceito ou de colchetes ([conceito]) que inundavam alguma resolução, texto de tratado ou declaração (na maior parte das vezes inúteis, pois que poucos a cumpriam depois). Certos drafts (rascunhos) de resoluções continham mais brackets (colchetes) do que ideias interessantes. Mas assim era, e é, o mundo da ONU.

Pois bem, o Sul Global é exatamente isso: uma massa de 130 ou 140 países em desenvolvimento – os socialistas desapareceram pelo caminho e a China permaneceu sendo a China, o “grupo do eu sozinho” –, que pediam “tratamento diferencial e mais favorável”, depois uma “Nova Ordem Econômica Internacional” (NOEI), mais adiante novas preferências comerciais e acordos favoráveis às “políticas nacionais de desenvolvimento” (a palavra chave em todos os convescotes multilaterais), mais “transferência de tecnologia” (de graça, claro), um maior volume de “empréstimos concessionais” e o reforço da “cooperação ao desenvolvimento”. Alguns países (poucos) pularam a barreira do subdesenvolvimento, ascendendo do G77 para os desenvolvidos (os tigres asiáticos), vários ex-socialistas ingressaram na UE e na OCDE, outros, talvez mais numerosos, com as crises financeiras, retrocederam para o grupo dos “super pobres” (ou LDCs, na sigla em inglês).

O Sul Global permanece o mesmo e até tem gente pedindo uma nova NOEI, quando não uma “nova ordem globaltout court. Pois bem, retomo a pergunta do título: se eu quiser falar com o tal de Sul Global, eu telefono para quem? Mister K teria alguma ideia?

 

Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor

www.pralmeida.org

diplomatizzando.blogspot.com

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  1. Choca profundamente o termo "Sul Global". Denota, no mínimo, uma profunda estupidez. Isso porque os principais países do "Sul Global" (China, Índia e Rússia) ficam no hemisfério Norte. Mas esta postura mostra o que é a cabeça das pessoas que usam esse termo, que ignoram solenemente a realidade e ficam com suas fantasias e desejos. Essa é a esquerda mundial.

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