O fetiche das referências
Um filme que dialoga com outras obras pode ser ruim, como é o caso de "A Substância"
Vi lá na rede X um compilado das referências do filme A Substância, da diretora Coralie Fargeat, lançado recentemente. Estavam ali comparações com filmes de Hitchcock (Psicose), Kubrick (O Iluminado), Cronenberg (A Mosca), De Palma (Carrie, a estranha).
A quantidade de referências foi vista como um atestado de qualidade. Um filme que dialoga com filmes tão bons só poderia ser bom. É um erro pensar assim.
A tendência autorreferente do cinema tem se tornado um vício. Um filme não pode ser um quebra-cabeça com elementos de outros filmes, ainda mais filmes já tão imitados.
Evidentemente, ninguém cria do zero uma obra de arte. A formação intelectual, as referências artísticas, o percurso biográfico, e até incidentes banais da vida cotidiana, podem servir de material para a criação artística.
Mas o exagero na reprodução de referências de outros filmes indica uma obra de segunda mão.
Consigo localizar de onde vem o fetiche das referências: Quentin Tarantino, talvez o cineasta mais influente da nossa geração. Popularizou-se a comparação dos filmes de Tarantino com os de suas referências cinematográficas, como Sergio Leone, Federico Fellini, Sam Peckinpah etc. Referências bastante explícitas, muitas cenas são semelhantes.
Mas Tarantino é bem diferente do cinema de matriz universitária inspirado em referências tiradas do Tik Tok (leia o artigo O cinema e a concorrência da internet) que tem ocupado as salas e os festivais nos últimos anos.
Tarantino faz um cinema bastante original. As referências dialogam entre si, trazendo gêneros desconhecidos do grande público, usando fatos históricos e os integrando na narrativa dos seus filmes.
No final das contas, Tarantino consegue fazer um filme tão relevante quanto o dos seus mestres. Era uma vez em Holywood é um bom exemplo: tem a crueza de um Sam Peckinpah, tem a reelaboração de fatos históricos e o uso de figuras históricas de Holywood (como Natalie Wood).
A série Sopranos dá outro bom exemplo de uso criativo de referências. A obra incorpora elementos de vários filmes de máfia, inclcluindo os atores que participaram desses filmes. Mas não chega a ser um pastiche, uma vez que retrabalha esses elementos em outro contexto. Isso até mesmo causou estranhamento a Martin Scorsese: coloca a máfia num ambiente de subúrbio, em vez das grandes cidades.
Já, filmes como A Substância parecem conchas de retalhos.
Já vi gente de cinema dividir o mundo entre os diretores que têm referências, como uma qualidade, e os que não têm referências, como um defeito – as referências citadas são apenas cinematográficas, evidentemente.
Para mim é o oposto. Prefiro cineastas sem referências diretas, ou que não expõem de modo óbvio suas referências, como Julien Duvivier, Marcel Carné, John Ford, John Cassavetes. Os filmes deles são puros, criados integralmente do zero, como um escultor tira uma obra do mármore bruto.
Eles são minhas referências. O escultor Auguste Rodin fez a síntese necessária sobre o tema no livro As catedrais da França: "Não é procurando roubar o segredo pessoal do seu gênio que alcançamos os mestres; é estudando, como eles, a natureza."
Josias Teófilo é cineasta, escritor e jornalista
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