Biblioteca imaginária
Nas prateleiras, temos livros que nunca vamos ler, que serão consultados, que vão ser lidos em parte e que vamos reler a vida toda

A minha biblioteca foi crescendo e chegou a cerca de 3 mil livros. Quando algumas pessoas chegam em minha casa, acontece de surgir a pergunta: “Você já leu isso tudo?”.
É uma pergunta leiga, como diz Italo Sena. Costumo responder: “Numa biblioteca pessoal, temos livros que nunca vamos ler, livros que vão servir para serem consultados, livros que vão ser lidos em parte, livros que vão ser lidos inteiros de uma vez, e livros que vamos reler a vida toda”.
Neste último tipo está A arte da prudência, de Baltasar Gracián – já li tantas vezes o livro do padre jesuíta espanhol que perdi a conta.
E A Cidade Antiga de Fustel de Coulanges, para citar só dois.
Já o Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, só li duas vezes (uma em cada tradução), mas fui tão marcado que deixou a impressão em tudo que fiz depois.
Os livros da biblioteca que eu não li (e pode acontecer de nunca ler) têm sua função também.
Eles estão fisicamente à minha disposição e estar à disposição é uma função.
Mas o importante é: se eu os comprei, sei algo sobre eles, sei da categoria que eles se inserem, sei com que outros livros eles dialogam – em suma, sei o suficiente sobre eles, eles já fazem parte da minha biblioteca imaginária, o equivalente mental da biblioteca física.
Uma coisa que jamais se deve fazer é colocar o livro na estante sem antes dar uma boa lida nele: ver ao menos a capa traseira, as orelhas, o índice, e dar uma lida inicial no miolo. Se você não fizer isso ele pode se perder lá dentro, e vai se perder dentro da sua cabeça também.
Uma biblioteca inspira o pensamento de que para escrever um livro é preciso ter uma contribuição significativa para dar – uma vez que existem tantos outros livros no mundo. A questão é que os livros inspiram outros livros.
Na verdade, noto que muitos outros livros deveriam estar sendo escritos no Brasil de hoje.
E não só sobre fatos políticos, como o impeachment de Dilma, os movimentos de rua e a nova direita, mas também sobre o estado da cultura brasileira – o gênero ensaio, tão profícuo na história da literatura, poderia estar sendo bem mais explorado.
Faltam também livros biográficos, não necessariamente sobre pessoas famosas.
Biografias de pessoas anônimas, se bem escritas, podem provocar grande interesse – na realidade, toda a história da literatura mostra que as pessoas normais têm um mundo de complexidade dentro de si, e um autor talentoso consegue captar isso.
Livros não precisam ser exaustivos, nem longos – podem ser pequenos e de leitura rápida, como são tantas obras no mercado europeu.
Acho um ótimo exemplo os livros de Svetlana Alexevich, escritora ucraniana ganhadora do Nobel de Literatura, que ficou famosa pelo livro Vozes de Chernobyl – o livro inspirou a excelente série da HBO.
Svetlana não concebeu nada do que está ali – só pegou depoimentos e os editou. Os depoimentos não foram feitos por pessoas com inteligências excepcionais, ou conhecidas, mas pessoas comuns, que contam suas histórias trágicas.
Aliás, livro e série provaram o mesmo efeito em mim: tive uma pequena depressão logo após lê-los.
Senti-me transportado para aquele ambiente aterrorizante – acho que esse livro nunca mais vai sair da minha biblioteca imaginária.
Josias Teófilo é escritor, cineasta e jornalista
As opiniões dos colunistas não necessariamente refletem as de Crusoé e O Antagonista
Os comentários não representam a opinião do site; a responsabilidade pelo conteúdo postado é do autor da mensagem.
Comentários (6)
Albino
2025-05-18 10:25:08Aliás, Josias, se tiver interesse, me dê um endereço para correspondência que posso lhe enviar um exemplar, abs; [email protected], ou zap (16) 99602-2103
Eduardo
2025-05-17 11:15:09Excelente! Crusoé poderia abrir este artigo para enviarmos a não assinantes.
Marcia Elizabeth Brunetti
2025-05-17 08:59:03Tenho livros lindos de arte que estarão sempre na minha biblioteca, e outros que acabei doando visto que estavam ultrapassados. Especialmente porque minha literatura é quase toda de livros técnicos.
Douglas Bonacuore
2025-05-16 22:18:04Ao ler um texto do Josias ou assistir alguma entrevista dele em podcast, não esqueço da caneta e do papel para anotar as sugestões de livros, filmes e obras musicais. Um verdadeiro acervo em pessoa.
Avelar Menezes Gomes
2025-05-16 17:40:22Eis aí uma coisa impossível de saber com relação a escrever um livro com temática ou abordagem inédita
Albino
2025-05-16 08:20:49Maravilhoso!!! Já anotei os dois livros de sua incansável leitura para acesso quando puder. "Biografias de pessoas anônimas, se bem escritas, podem provocar grande interesse - na realidade, toda a história da literatura mostra que pessoas normais têm um mundo de complexidade dentro de si..." Pois lhe sugiro, caro Josias, o livro autobiográfico "O Ciclo Gestatório de um Homem", em e-book na Amazon e em papel no Clube de Autores, "...talvez o mais profundo mergulho na alma humana desde 'A Interpretação dos Sonhos', de Freud". Apesar de médico (do SUS!, tal o meu insucesso profissional), e com formação em psicoterapia analítica de grupo, sou absolutamente desconhecido e não consigo divulgar minhas obras. Por coincidência, também li a obra de Proust por duas vezes, e a cito diversas vezes em minha obra. Septuagenário, já em fim de linha, preciso desesperadamente de um Mecenas intelectual...