Sob o céu da Hélade
Enquanto falava aos meus alunos, nesse périplo grego, percebi que não estávamos apenas visitando ruínas, mas continuando uma conversa de mais de dois milênios

Há experiências que suspendem o tempo. Ministrar aulas na Grécia é uma delas.
Quando pisei na Acrópole, com o sol se derramando sobre o mármore pentélico antigo, percebi que nenhuma sala de aula, por mais ampla, poderia conter o que aquele lugar significa.
Falar de filosofia ali não é repetir teorias: é conversar com as próprias raízes do pensamento. Entre as colunas do Partenon, senti que as palavras vinham com outro peso, como se cada conceito tivesse sido pronunciado antes por alguém que ainda me ouvia de alguma forma.
Ensinar ali é, antes de tudo, escutar. O murmúrio do tempo mistura-se às vozes dos turistas, e, de repente, o que parecia ruína torna-se presença.
Explicar Sócrates na Acrópole é compreender que o saber nunca foi um acúmulo de ideias, mas um modo de viver; e que o filósofo, em qualquer época, é aquele que transforma a curiosidade em destino.
Depois, no Liceu de Aristóteles, o chão parecia guardar o passo dos antigos discípulos.
Sob as árvores, onde o mestre caminhava ensinando, compreendi o sentido da filosofia peripatética: pensar é também mover-se, deixar que as ideias respirem o ar da cidade, misturar o raciocínio ao rumor da vida.
Falar ali do deus aristotélico foi como acender uma lanterna dentro da mente.
Nada de fórmulas, nada de abstrações, apenas a sensação de que compreender o mundo (ou de tentar fazê-lo) é uma forma de devoção cética.
Na Academia de Platão, ao entardecer, experiência não menos impactante.
O espaço é simples, quase despretensioso, e ainda assim se sente que dali o pensamento se ergueu à altura máxima.
Foi inevitável olhar o céu e imaginar o mestre ateniense apontando para ele, dizendo que o verdadeiro conhecimento habita o mundo das formas ideais.
E, por um instante, compreendi que talvez a filosofia seja justamente isso: um modo de aprender a olhar para cima, sem esquecer o chão.
Enquanto falava aos meus alunos, nesse périplo grego, percebi que não estávamos apenas visitando ruínas, mas continuando uma conversa de mais de dois milênios.
Aquelas pedras ouviram o nascimento do pensamento ocidental; agora, ouviam nossas vozes tímidas, repetindo perguntas antigas com o mesmo espanto de quem as formulou pela primeira vez.
Ministrar aulas na Grécia foi descobrir que a filosofia nunca pertenceu às bibliotecas: pertence ao ar.
Está no ritmo dos passos, no silêncio entre as frases, no brilho da luz sobre o mármore.
E quando o sol se põe, e o eco das palavras se mistura ao rumor das ruas, entende-se que o verdadeiro sentido de ensinar filosofia não é transmitir respostas, mas manter viva a centelha de quem aprendeu a perguntar.
Voltei ao hotel em silêncio, sem anotações. Apenas com a sensação de ter estado, por um breve instante, no centro do mundo.
Na terra dos Helenos o pensamento aprendeu a andar de mãos dadas com a beleza. Onde o homem, em vez de temer os deuses, decidiu dialogar com eles, questionando-os.
Onde o olhar sobre o mundo deixou de ser apenas reverência e passou a ser investigação. Foi nesse solo de sol e maresia que nasceu o que chamamos de civilização ocidental; e o seu verdadeiro “milagre” não está em monumentos, mas em ideias.
Claro, o legado da Grécia vai além da beleza. Está na invenção da palavra como instrumento de convivência e reflexão rigorosa.
Foi nas praças de Atenas que alguém imaginou que discutir o destino da cidade era mais nobre do que simplesmente obedecer a um rei.
Foi ali que a política se tornou arte, e a democracia, ainda imperfeita, começou a ser um sonho coletivo. O que nos parece tão natural (votar, debater, discordar) é herança direta desse tempo em que falar era um ato de liberdade.
E há também a própria filosofia, essa inquietude que não envelhece. Os gregos transformaram a dúvida em método, o espanto em caminho.
Em Sócrates, o saber começa pela confissão de ignorância; em Platão, as ideias se tornam forma de salvação; em Aristóteles, o mundo se organiza como um grande raciocínio. Desde então, pensar é, de algum modo, continuar aquela conversa interrompida entre mestres e discípulos, entre homens e deuses, entre o que somos e o que aspiramos ser.
Testemunhas de uma época em que o homem acreditava que compreender o mundo era também uma forma de aperfeiçoar-se. A Grécia antiga soube algo que nós, modernos, parecemos ter esquecido: que o progresso sem sentido é apenas movimento errático, e que a verdadeira grandeza está em cultivar o espírito.
Talvez seja por isso que cada viajante que passa por aqui experimenta uma forma discreta de reverência ritual. Diante das colunas partidas e do silêncio das cidades altas, sentimos que algo dentro de nós reconhece sua origem.
O mundo mudou, os impérios passaram, mas a Grécia continua ali, como uma chama que não se apaga, lembrando-nos de que pensar, criar e buscar o belo ainda são as formas mais altas de existir.
Sob o céu azul que Homero descreveu, o tempo parece se curvar. A Grécia antiga, afinal, não pertence ao passado: pertence àquilo que é eterno no ser humano.
De Atenas, especialmente para os leitores de Crusoé.
Dennys Xavier é escritor, tradutor e PhD em Filosofia
Instagram: prof.dennysxavier
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Comentários (3)
Eliane ☆
2025-10-10 15:04:17Na sombra de uma árvore ouvindo o grande e admirável professor Dennys Xavier. Simplesmente deslumbrante...
César
2025-10-10 11:33:18Emocionante!
Albino
2025-10-10 07:15:17Que graça...!