Polly Irungu/The White House“Está na hora da gente fazer o que já estamos fazendo. E essa hora é todo dia”

A maestria oratória de Kamala Harris

Parece um meta-texto, isto é, um texto sobre textos e a maneira didática de escrever textos. Mas é um texto sobre Kamala Harris — que fala exatamente assim
02.08.24

Isto é um texto. Um texto é um negócio que a gente usa pra dizer as coisas, só que é para dizer escrevendo, não para dizer falando. Mas isto é um texto e além de ser um texto é também um primeiro parágrafo. É um texto, mas não é o texto inteiro, é o primeiro parágrafo que vem na frente do texto. (Mas, pensando bem, já é o texto.)

Este aqui é o segundo parágrafo. Ele é sobre a Kamala Harris, candidata democrata à presidência dos Estados Unidos. O primeiro parágrafo não era sobre a Kamala Harris, era sobre parágrafos e textos. Mas o segundo parágrafo é sobre a Kamala Harris. Ou na verdade não, ele é sobre o que tem de diferente entre o primeiro e o segundo parágrafo. Mas o terceiro parágrafo vai ser sobre a Kamala Harris.

Kamala Harris fala assim como eu estou escrevendo. Ela é considerada uma mestre da oratória, acho eu (deve ter pelo menos um jornalista que ache isso), e tem um estilo peculiar de se expressar que lembra Cícero quando ele falava dormindo. Ela falou, por exemplo:

“A Ucrânia é um país na Europa. Ela existe do lado de um país chamado Rússia. A Rússia é um país maior. A Rússia é um país poderoso. A Rússia decidiu invadir um país menor que chama Ucrânia. Então, basicamente, isso é errado.”

As agências de checagem disseram que isso estava fora de contexto. O contexto é que era uma entrevista de rádio, e que o entrevistador pediu para a Kamala explicar a situação da Ucrânia para alguém que não entende muito da geopolítica da área. Ela respondeu desse jeito, pausando bastante as palavras. Isso muda tudo, obviamente. Parece um raciocínio mais inteligente e complexo quando você entende o contexto.

O jeito de Kamala falar é simples e didático, de um jeito que empolga as multidões. Não multidões de muitas pessoas, mas multidões de pessoas isoladas aqui e ali, e não empolgadas-empolgadas de verdade, mas esse estilo de empolgação e frenesi das multidões que a campanha da Kamala Harris está causando nos Estados Unidos.

Mas nem sempre ela é super didática. Às vezes reclamam do contrário, quando acontece o contrário, que é frequentemente o contrário de ser bem simples, que é ser bem simples de um jeito que não dá para entender nada. Pois ela também disse:

“A gente estava fazendo um tour pela biblioteca aqui e conversando sobre o significado da passagem do tempo, ok? O significado da passagem do tempo. Então quando você para pra pensar, tem muito significado a passagem do tempo em termos do que precisamos fazer para colocar esses fios. O que precisamos fazer para criar estes empregos. E tem um grande significado na passagem do tempo quando pensamos num dia na vida dos nossos filhos.”

Os críticos reclamam que isso não está muito claro. Mas quem pode falar de forma clara sobre o significado da passagem do tempo? Marcel Proust? Você já leu Proust? Por que Kamala Harris deveria ser mais clara que um autor francês?

A política Tulsi Gabbard, que apoiou Joe Biden, disse que uma vitória de Kamala seria ruim porque seria um sinal para todas as mulheres jovens dos Estados Unidos de que vale a pena se prostituir para subir na vida. O que ela quis dizer com isso? Isso sim é um estilo incompreensível para mim e, no entanto, ninguém fala mal de Tulsi Gabbard por causa dessas referências completamente enigmáticas, que o Google aliás não explica.

Sobre a Covid, Kamala disse:

“Está na hora da gente fazer o que já estamos fazendo. E essa hora é todo dia.”

O que é uma volta muito bem-vinda à clareza, depois da fase experimentalista e um pouco mais barroca (a fase hemingwayana se sucedendo à fase joyceana de Kamala Harris).

De qualquer forma, alguns críticos notam uma influência clara do estilo literário de Dilma Rousseff, ou até mesmo uma “angústia da influência”, que é um termo crítico que significa que o escritor sente uma angústia, de uma influência, que o influencia.

Sobre o trabalho de dois astronautas:

“Bob e Doug voltaram pro Centro Espacial. Eles puseram as roupas deles. Eles fizeram tchau pras famílias deles, e subiram num elevador, quase 20 andares! Eles se amarraram nas cadeiras deles e ficaram esperando enquanto os tanques lá embaixo se encheram com dezenas de milhares de galões de combustível! E daí eles decolaram. Ah sim, foi sim”, e soltou uma de suas características e charmosas risadas sem controle. Pois Kamala tem o riso súbito e inapropriado de um adolescente chapado passando por você pelo muro de um cemitério às duas da manhã.

Muitas pessoas comparam seu estilo de oratória com o de Donald Trump. Mas Donald Trump, cujo estilo é seco e simples, feito de frases curtas, é sempre inteiramente compreensível. Kamala Harris é seca, simples e usa frases curtas, mas suas frases secas, simples e curtas se voltam contra si mesmas e anulam e confundem o significado umas das outras de maneira supremamente artística.

De qualquer forma, nos próximos meses vamos observar o choque de dois poderosos estilos de retórica — o com algum sentido e o sem sentido nenhum. Esse confronto vem se repetindo desde o início da história da humanidade. O estilo sem sentido nenhum, quase sempre, vence.

 

Alexandre Soares e Silva é escritor
 

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