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A salada do rachid

Crusoé teve acesso ao único inquérito aberto pela Polícia Federal a partir dos relatórios do Coaf que expuseram deputados do Rio garfando parte dos salários de assessores. Há um ex-ministro petista entre os personagens da apuração, que também está parada por ordem de Toffoli
25.10.19

Em setembro, um despacho da procuradora Gabriela Pereira, do Ministério Público Federal no Rio de Janeiro, ordenou a paralisação do único inquérito conduzido pela Polícia Federal a partir de relatórios produzidos pelo antigo Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, que revelaram centenas de transações suspeitas de funcionários da Assembleia Legislativa fluminense, entre eles Fabrício de Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro.

O ato da procuradora obedeceu a decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, que, atendendo a um pedido do filho 01 do presidente Jair Bolsonaro, acabou mandando parar todas as investigações do país com origem em relatórios do Coaf e da Receita Federal que não tenham passado antes pelo crivo de um juiz. Crusoé teve acesso a informações da investigação paralisada no Rio, que ilustra à perfeição o quanto a canetada de Toffoli agradou a personagens das mais diversas colorações partidárias – desde a família presidencial até petistas, passando por aliados do governador do Rio, Wilson Witzel, e outras figuras emblemáticas da cena política.

Um dos alvos da investigação é um ex-assessor do atual líder de Witzel na Assembléia Legislativa fluminense, o deputado estadual Márcio Pacheco, do PSC. O inquérito foi instaurado em 26 de fevereiro de 2019 pelo delegado federal Acen Amaral Vatef para apurar se o advogado Fabiano Machado da Rosa, lotado no gabinete do deputado estadual Márcio Pacheco entre junho de 2013 e agosto de 2014, movimentou valores incompatíveis com sua renda. O objetivo era descobrir por qual motivo ele fez transações com a empresa de um doleiro, Carlos Eduardo Caminha Garibe.

Conhecido como Carlão, Garibe foi preso em maio de 2018 na Operação Câmbio, Desligo. Fabiano Machado da Rosa, o ex-assessor do deputado estadual do PSC, é um advogado do Rio Grande do Sul. Ele recebeu em sua conta, segundo o Coaf, 1,7 milhão de reais entre 2016 e 2018. Do total, cerca de 500 mil entraram por meio de depósitos em espécie. Entre as transações que chamaram a atenção e foram listadas no relatório como atípicas está um pagamento para o ex-ministro petista Tarso Genro – sim, senhores, a mistura de personagens desta história tem um quê de surrealismo.

Para entender as conexões, é preciso destrinchar as relações entre os personagens. O Coaf anotou no relatório que, entre julho e outubro de 2017, Rosa, o ex-assessor do líder de Witzel, fez um repasse de 43 mil reais para Tarso Genro. Diz o documento: “Cliente recebeu recursos em espécie e no mesmo dia enviou os valores para Tarso Genro através de TED, sendo que apesar de possuírem ligação profissional em comum entre os dois no ramo advocatício movimentação não condiz com sua atividade não sendo possível identificar a origem dos recursos”.

Claudio Fachel/Palácio PiratiniClaudio Fachel/Palácio PiratiniO petista Tarso Genro recebeu um pagamento que foi anotado pelo Coaf
A ligação profissional a que se referiu o Coaf guarda relação com o escritório de advocacia do ex-assessor. Além de um sócio dele ter atuado em favor de Tarso Genro em um processo no Rio Grande do Sul, o ex-ministro petista também teria prestado serviços à banca. Essa, aliás, é também a explicação de Genro para o dinheiro recebido em sua conta. Procurado por Crusoé, ele disse que depois de deixar o governo voltou a atuar como advogado e prestou serviços advocatícios ao escritório, o que, diz ele, justifica o pagamento dos 43 mil reais.

A mistura de personagens dos mais diversos matizes políticos no material reunido pelo Coaf e repassado à Polícia Federal esvazia o discurso de que as investigações estariam sendo direcionadas para atingir a família do presidente Jair Bolsonaro. Há mais gente conhecida cujas transações atípicas são expostas no material. É o caso da notória família Picciani, cujo patriarca, Jorge, ex-presidente da Assembleia do Rio, foi preso pela Lava Jato. Entre as operações do clã apontadas como suspeitas está a aquisição de uma apólice de seguro relacionada a um imóvel de 1,9 milhão de reais localizado na Barra da Tijuca.

Rafael Picciani, o filho de Jorge que foi deputado estadual no Rio e ocupou cargos na prefeitura da capital fluminense, aparece relacionado a transações suspeitas da Agrobilara, uma empresa do ramo agropecuário administrada por ele. A agropecuária teria aplicado 2,3 milhões de reais em fundos de investimentos entre 2012 e 2017. No relatório, os técnicos do Coaf afirmam tratar-se de “operações cujos valores se afiguram objetivamente incompatíveis com a ocupação profissional, os rendimentos e/ou a situação patrimonial/financeira de qualquer das partes envolvidas”. A suspeita é que as transações tenham servido para lavar dinheiro de origem ilícita.

O relatório menciona ainda operações atípicas de Luiz Felipe Conde, ligado a outro deputado estadual do Rio, Paulo Sérgio Ramos Barboza. É mais um caso ilustrativo da salada partidária que desmonta a cantilena de que os relatórios do Coaf seriam dirigidos a um determinado grupo político: Paulo Sérgio Barboza é do PDT. O documento registra que Luiz Felipe Conde recebeu em sua conta, entre novembro de 2017 e abril de 2018, 1,2 milhão de reais. Outro assessor da Alerj cujo nome aparece no documento é Mario Marcio Nicolau Francisco de Souza. Ele foi funcionário do ex-deputado estadual Tio Carlos, do Solidariedade, e recebeu em sua conta 2 milhões de reais em seis meses.

Embora seja o ex-assessor do líder de Witzel o principal o alvo do inquérito, o nome de Flávio Bolsonaro não apareceu nos autos apenas no relatório que originou a investigação. Antes de o caso parar por causa da liminar concedida por Dias Toffoli, o Ministério Público Federal no Rio enviou à Receita Federal um pedido de informações fiscais sobre todos os citados no documento do Coaf. A lista incluiu o filho do presidente e Fabrício Queiroz.

No pedido, a Procuradoria pede ao Fisco “informações acerca da existência de eventual Procedimento Administrativo Fiscal (PAF) ou Representação Fiscal para Fins Penais (RFFP) para investigar os fatos noticiados pelo Relatório de Inteligência Financeira 34670 do COAF”. Em fevereiro, a Receita, ao responder a solicitação, informou aos investigadores que no momento não poderia fornecer todas as informações porque parte das transações ocorreu em 2018 e, por isso, era preciso esperar o prazo para entrega das declarações de imposto de renda, que se encerrava em abril. “Observa-se que, no RIF, há muitos fatos relativos a 2018, cuja DIRPF correspondente será entregue, como de costume, até o final de abril do ano corrente”, afirmaram os auditores da Receita em documento enviado aos procuradores.

Reprodução/redes sociaisReprodução/redes sociaisQueiroz com Flávio Bolsonaro: relatório traz detalhes sobre outras transações
A parte do relatório do Coaf anexada ao inquérito que diz respeito a Flávio Bolsonaro reforça as suspeitas sobre o senador que já vinham sendo esquadrinhadas até a decisão de Toffoli. O documento diz que ele movimentou recursos superiores a sua capacidade financeira entre agosto de 2017 e janeiro de 2018. “A renda declarada pelo cliente aparentemente não ampara a movimentação financeira realizada no período”, anotou o Coaf. No período, Flávio declarava ter renda mensal de 27,3 mil reais. Somados os seis meses abarcados pelo relatório, o então deputado estadual recebeu 131 mil reais como salário da Alerj. Os dados comunicados ao Coaf pela agência em que ele tem conta, porém, mostram créditos de 337,5 mil, o que equivale a mais do que o dobro da renda esperada para o período.

Do total de créditos, diz o documento do antigo Coaf, 120 mil reais saíram da Bolsotino Chocolates, empresa da qual Flávio é sócio e que serve como razão social para uma franquia da loja de chocolates Kopenhagen em um shopping do Rio de Janeiro. Os outros 80 mil restantes que entraram na conta do agora senador não têm a origem detalhada. O documento ainda esmiuça os valores que saíram da conta de Flávio. Ao longo dos seis meses, 94 mil reais foram utilizados em pagamentos de faturas de cartões de crédito (em média, 15,6 mil por mês), 51 mil foram destinados ao pagamento de financiamentos imobiliários e outros 30 mil foram para o dono de um empresa de consultoria imobiliária. Cerca de 54 mil saíram da conta do filho do presidente para pagamentos de contas.

Também no caso de Fabrício Queiroz o relatório amplifica as suspeitas. Em apenas seis meses, a conta dele no Itaú recebeu 411 mil reais. Desse total, diz o documento, apenas 63 mil reais estão relacionados aos seus rendimentos como PM e como assessor de Flávio. O restante, 348 mil reais, não tem lastro. Já as saídas de valores da conta de Queiroz seguem o mesmo padrão das movimentações classificadas como atípicas no relatório anterior do Coaf, aquele que o levou à ribalta da cena nacional: do total de 306 mil reais, 262 mil, ou 85,8%, foram retirados por meio de saques na boca de caixas eletrônicos. São 140 saques, a maioria concentrada na agência do Itaú na Alerj. O Coaf observou que 38 dessas retiradas, cujo somatório chega a 190 mil reais, foram feitas em sequência com o objetivo foi fracionar os valores – uma medida usada justamente quando se quer escapar do controle das autoridades financeiras.

Há outras operações que chamam ainda mais a atenção. Por exemplo, no dia 7 de novembro de 2017, Queiroz realizou quatro saques de 5 mil reais, em quatro agências diferentes, em um intervalo de cerca de 3 horas. Os técnicos do Coaf destacaram o caráter inusual do procedimento: “Verificamos fracionamento nos saques em espécie com cartão de débito, fato que nos desperta a suspeita de ocultação do destino deste valor e a sua finalidade”.

Assim como no caso de Flávio, não foi um funcionário do Coaf que resolveu por conta própria mapear as transações ou, como dizem os críticos do trabalho do órgão, quebrar o sigilo dos envolvidos. As operações foram comunicadas pelo Itaú por força de uma norma do Banco Central segundo a qual os bancos são obrigados a informar situações que “por sua habitualidade, valor e forma, configurem artifício para burla da identificação da origem, do destino, dos responsáveis ou dos beneficiários finais”. Mesmo não sendo alvo da investigação, Queiroz chegou a pedir acesso aos documentos do inquérito conduzido pela PF.

Todas as informações, das que envolvem o petista Tarso Genro às que podem complicar ainda mais a situação do filho do presidente e de seu ex-assessor, seguirão no limbo enquanto vigorar a decisão de Dias Toffoli. O caráter pluripartidário do caso ajuda a entender por que a decisão foi interessante para os diferentes lados da política. E explica os motivos pelos quais, para todos eles, é melhor mesmo deixar o assunto cair na vala do esquecimento e fingir que a vida segue na normalidade. Como nos velhos tempos.

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