Divulgação/ Real MadridFoto: Divulgação/ Real Madrid

Endrick na Matrix

O atacante do Real Madrid já jogou com Bobby Charlton e Ferenc Puskás, como qualquer jogador de videogame, mas a bola dentro da rede segue valendo mais do que dentro da tela. Por enquanto
16.08.24

“O céu sobre o porto tinha cor de televisão, sintonizada num canal fora do ar”, diz a abertura de Neuromancer, clássico cyberpunk de William Gibson. O futuro cibernético descrito em 1984 pelo escritor americano, autor do termo “ciberespaço”, antecipou a realidade virtual com que o mundo se acostumaria décadas depois com a saga Matrix, e tudo isso tem a ver com o fato de que Endrick é fã de Bobby Charlton.  

O atacante do Real Madrid virou piada — aliás, mais do que isso, virou meme — por dizer que o inglês que jogou de 1956 a 1973 é um de seus ídolos. Se tivesse dito Garrincha ou Ademir da Guia, referência do Palmeiras onde Endrick iniciou a carreira com destaque, o jovem de 18 anos não teria causado tanto alarde. O fato é que ninguém cita Charlton entre os melhores da história, nem os próprios ingleses. 

Endrick já tinha mencionado sua admiração pelo jogador britânico quando jogou pela seleção brasileira em Wembley, em março, e marcou o gol da vitória por 1 a 0 no amistoso contra a Inglaterra. Desta vez, o caso ganhou mais repercussão porque ele já é jogador do Real Madrid, o maior clube de futebol de mundo, e também porque, na mesma entrevista, o atacante resolveu fazer média, dizendo que a promessa inglesa Jude Bellingham é melhor do que Neymar.  

O aceno ao companheiro merengue fez quase todo mundo esquecer que Endrick já jogou com Charlton. E também com o húngaro Ferenc Puskás, outro ídolo do passado longínquo mencionado, como qualquer jogador de Ultimate Team do EAFC, o sucessor do clássico simulador de futebol FIFA. Esse modo do videogame permite misturar jogadores de diferentes épocas no mesmo time. 

“Sempre via coisas do passado. Fui procurar um pouco do Puskas e pude ver ele [Charlton]. Depois que foi lançado no FIFA, primeira coisa que fiz foi comprar ele pro meu time. Depois fui mais atrás da história dele. Infelizmente faleceu neste ano [na verdade, em 2023], mas ter a oportunidade de jogar nesse estádio, onde ele pôde fazer gol, onde ele é ídolo também, estou muito contente”, explicou Endrick após o amistoso.  

“A chuva o acordou, uma garoa lenta, seus pés emaranhados em rolos de fibra ótica descartada. O mar de som do fliperama o inundou, recuou, retornou. Rolando, ele se sentou e segurou a cabeça. A luz de uma escotilha de serviço na parte traseira do fliperama mostrou a ele pedaços quebrados de aglomerado úmido e o chassi pingando de um console de videogame destruído. Japonês aerodinâmico estava estampado na lateral do console em rosas e amarelos desbotados. Ele olhou para cima e viu uma janela de plástico fuliginosa, um brilho fraco de lâmpadas fluorescentes. Suas costas doíam, sua espinha doía”, diz o narrador de Neuromancer ao descrever o momento em que Case, o cowboy cibernético que protagoniza a história, acorda sem saber onde está. 

Depois de ele interagir com Linda, com quem teve uma relação amorosa, e fumar um cigarro, algo se quebra. Algo mudou no cerne das coisas. O fliperama congelou, vibrou… Ela se foi. O peso da memória desceu, um corpo inteiro de conhecimento enfiado em sua cabeça como um Microsoft em uma tomada. Se foi. Ele sentiu o cheiro de carne queimada (…) O fliperama estava vazio, silencioso. Case se virou lentamente, os ombros curvados, os dentes à mostra, as mãos fechadas em punhos involuntários. Vazio. Uma embalagem de doce amarela amassada, equilibrada na borda de um console, caiu no chão e ficou em meio a pontas achatadas e copos de isopor.” 

A interação entre Case e Linda tinha sido gerada em sua mente com base nas memórias do herói da história, a mando de uma inteligência artificial que comanda a trama do livro manipulando a realidade na cabeça das personagens. É complicado. Assim como o fato de que Bobby Charlton, Pelé, Cruyff e Maradona já morreram, mas permanecem preservados no ciberespaço por meio dos videogames, mais vivos do que imaginávamos.  

É tão complicado que os responsáveis pelo EAFC deveriam pensar duas vezes antes de brincar com a realidade e igualar as capacidades de homens e mulheres dentro do campo virtual, como já alertei em A extensão do domínio de bola. A fronteira entre os mundos real e virtual está cada vez mais sutil, como comprova o caso de Endrick, mas a bola dentro da rede segue valendo mais do que dentro da tela. Por enquanto.

 

Rodolfo Borges é jornalista 

 

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