TV Globo/ReproduçãoConceitos sólidos ajudam a entender a realidade; clichês de militância prestam-se só a estigmatizar adversários

Guerra cultural: um guia para desertores, em cinco regras

Neste tempo de intransigência ideológica, ainda vale a pena apostar no bom senso e, sobretudo, no senso de ridículo
02.08.24

“Há uma guerra cultural em curso, e estou entre os derrotados.”  

Comecei assim um artigo publicado nesta revista em abril do ano passado. Lamentava a luta de soma zero em que o debate público se converteu, tendo de um lado a “direita paranoica” e de outro a “esquerda histérica” (mas os adjetivos, eu dizia então e repito agora, são intercambiáveis). 

Resolvi voltar ao tema, agora sem derrotismo. Com o espírito positivo e propositivo de um coach político-social, estou convidando você, leitor de direita ou esquerda, a ser um vencedor na guerra cultural. O caminho da vitória é simples: abandone o campo de batalha.  

Baixei umas regrinhas para aqueles que desejam se afastar do estúpido binarismo da conversa política atual. Na verdade, são mais recomendações do que regras, e espero que o leitor as tome com flexibilidade e humor. 

A convenção manda que regras desse tipo se apresentem em listas de dez, como as pragas do Egito. Preguiçosamente, parei na metade. 

1 – NÃO SE ORGULHE DE SER DE ESQUERDA OU DE DIREITA 

Vou ser categórico: nenhuma das duas posições pode reivindicar superioridade moral. 

Talvez já fosse hora de descartar essas categorias antiquadas, nascidas na Assembleia Nacional francesa no século XVIII. Mas o tal espectro ideológico que vai da esquerda à direita ainda serve para nos situar no mundo político. E a alternância dos dois campos no poder, desde que ninguém tente virar a mesa, é a alma do jogo democrático.  

Só que hoje cada um dos campos se vê como defensor único da democracia – o que na verdade é uma atitude muito antidemocrática. O esquerdista e o direitista típicos ainda acreditam que seus respectivos armários não guardam esqueletos (talvez estejam ambos certos: os cadáveres produzidos por ditaduras de esquerda e de direita ainda estão frescos). 

Bem, tanto a esquerda que está no poder quanto a direita que a antecedeu me parecem, para dizer de modo suave, insatisfatórias. Entendo que o leitor prefira esta à aquela ou aquela a esta. Só não encontro motivo razoável, nas circunstâncias atuais, para bater no peito inchado ao se declarar de direita ou para subir no pódio da virtude para se anunciar de esquerda. Moderem-se, amigos.  

Outra coisa: dizer “isso é coisa da esquerda/da direita” não basta para invalidar uma ideia ou desqualificar uma pessoa. Por favor, não empregue essas categorias vetustas como insulto. 

2 – FUJA DOS CLICHÊS 

Nas suas manifestações mais caricatas, a guerra cultural é uma troca de xingamentos. Um lado chama o outro de “comunista”, o outro responde com “fascista” ou “extrema direita”. Um pouco acima desse nível elementar, as batalhas são travadas com um vasto arsenal de ideias feitas: marxismo cultural, pacto da branquitude, engenharia social, privilégio branco, politicamente correto, racismo estrutural.  

Essa lista breve contempla, alternadamente, expressões próprias da direita e da esquerda. As duas primeiras designam teorias da conspiração. As demais talvez ainda conservem usos aceitáveis, mas estão quase irremediavelmente comprometidas pela vulgarização politizada. Conceitos sólidos e bem definidos ajudam a entender a realidade; os clichês da militância prestam-se apenas a estigmatizar adversários.     

3 – NÃO BOTE FÉ EM POLÍTICOS 

Essa regra tem o sentido de evitar o personalismo da vida pública brasileira. Pois nossa versão empobrecida da guerra cultural se concentra em torno de dois candidatos a caudilho: Lula e Bolsonaro. Na política institucional, quase não há margem para uma esquerda que se distancie do primeiro ou uma direita que se afaste do segundo. 

E não, não estou dizendo que todos os políticos são iguais. Alguns deles podem até merecer seu voto. Nunca sua devoção. 

4 – OUÇA TODO MUNDO, CONVERSE COM POUCOS 

A retórica sectária que hoje domina o discurso público vem levando indivíduos sensatos à radicalização. Dito de forma mais direta: as pessoas estão pirando por causa da política.  

Em tese, é louvável buscar o diálogo com os fanáticos na tentativa de conduzi-los à moderação e à tolerância. Mas você já tentou argumentar com o bolsonarista que se sente traído pelas Forças Armadas que não ouviram o clamor popular do 8 de janeiro? Ou com o lulista que considera fascista metade da população brasileira? 

Confesso: já bati boca com muito maluco no Facebook. Só consegui me envenenar de estupidez e agressividade. Ouça quem já fez essa bobagem, amigo leitor: nunca entre em treta com estranhos em rede social. 

Nem sempre o doidinho político é um estranho. Pode ser um colega de trabalho, um amigo de infância, um primo, um irmão, o pai, a mãe. Não é o caso de perder relações tão caras por mesquinharias partidárias. 

Vou dar uma de conselheiro afetivo: nesses casos, apenas ouça o que o radical querido tem a dizer. Se quiser discordar, seja delicado. Conceda que ele está certo em um ponto para contestar outro. E conduza a conversa para temas mais proveitosos, como futebol, fofocas de família ou Scarlett Johansson. 

De resto, espero que o leitor também encontre – como eu ocasionalmente encontro – amigos dos quais se pode discordar civilizadamente. Há uma alegria particular na conversa animada entre pessoas de ideias às vezes opostas, mas que se respeitam. Pessoas que não desceram às trincheiras enlameadas da guerra cultural: com elas, existe diálogo.  

5 – TENHA SENSO DE RIDÍCULO 

Militantes no entorno da sede da Polícia Federal em Curitiba dando bom dia para Lula. Manifestantes na avenida Paulista entoando uma canção de Roberto Carlos para homenagear o então ministro da Justiça Sergio Moro. Roda de universitários sebosos cantando “sou do Levante, tô com Maduro”. Civis acampados em porta de quartel marchando com a bandeira nacional atada ao pescoço como a capa de um super-herói. 

Você já viu muitas imagens como essas. É para coisas assim que surgiu a expressão “vergonha alheia”.  

Quem se engaja na guerra cultural abdica do senso de ridículo – com o qual também se perde o senso da realidade.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

 

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  1. Muito bom ler este texto que sugere algumas coisas para melhorar a interação tóxica se tem neste ambiente polarizado. Talvez eu seja um pouco mais moderado que o meu xará de sobrenome, mas incluir o senso de ridículo na lista acaba por ofender pessoas que pensam diferente. Valeria avisar o Jerônimo para reler e praticar os pontos anteriores, evitando o desprezo pelos diferentes.

  2. Colocar como simplesmente opostos é bonito mas não condiz com o que se vê. Nas manifestações públicas ditas de direita, aceita-se brados em contrário. O oposto jamais ocorre. O manifestante é calado no grito ou na porrada e expulso do local sagrado. O resto é tentar colocar numa forma didática, a negação do óbvio.

  3. Espremidos sob duas ideologias medievais submetemo-nos à semi escravidão ... a tecnologia mudará tudo rapidamente e o HUMANISMO que é o equilíbrio entre a tecnologia e as ideologias vigentes socializará o mundo e novas formas de vida e convivência fatalmente surgirão ... sob explosão demográfica a liberdade está irremediavelmente perdida e isto é mera questão de tempo ... e graças a Zeus estarei no Plano Alfa de Zeus e nada me fará retornar.

  4. Muito bom. Me enxerguei do lado de lá e do lado de cá em algumas situações, embora de forma inconsciente e não tão extremas.

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