Polícia FederalAreal ilegal em Seropédica (RJ), alvo da PF no início do mês

Os crimes da areia

Item é mais raro que parece — e sua extração ilegal enriquece o crime organizado em todo o mundo. No Brasil, montantes ilegais são bilionários
19.07.24

A maior milícia do Rio de Janeiro, comandada até o Natal passado pelo miliciano conhecido como “Zinho”, tinha um império de serviços legais e ilegais, para garantir a renda de seus membros na zona oeste da capital do estado e na baixada fluminense. Uma das atividades mais lucrativas era uma das menos lembradas: a sua milícia operava um areal na cidade vizinha de Seropédica, onde ele extraía o mineral ilegalmente para venda a depósitos da região. Nos cálculos da polícia, 90% dos areais da região, uma das maiores produtoras do país, estaria sob influência da milícia. Tandera, outro líder miliciano que ainda está solto, também tinha suas dragas por ali.   

Seropédica é apenas um grão em um mercado ilegal que movimentou cerca de 29,2 bilhões de reais no Brasil em 2022, segundo estudo recente publicado pela Ação Contra os Crimes Ambientais, Minerais e Tráfico de Animais Silvestres (Accamtas).

O estudo mostra que a extração ilegal implica em perdas milionárias de arrecadação tributária em todas as regiões brasileiras — mas principalmente nas regiões Sudeste e Nordeste. Em todo o país, 68% da areia consumida tem origem ilegal. 

O furto de areia é o terceiro tipo de crime transnacional mais lucrativo, atrás apenas da pirataria e do tráfico de drogas, calcula Luís Fernando Ramadon, policial federal e autor do estudo da Accamtas.  Além dos crimes fiscais pelo contrabando do item — essencial para a construção civil moderna— as extrações ilegais e descontroladas do mineral compõem um risco grave ao meio ambiente, corrompendo mananciais, rios e bacias hidrográficas inteiras. Para um mundo que já se vê às voltas com o uso de combustíveis fósseis, a extração de 60 bilhões de toneladas de areia por ano, segundo a ONU, é um problema ambiental grave, que só em anos mais recentes começou a ter a devida atenção. 

 

Areias e areias 

Olhando o mapa-múndi, é até difícil imaginar que a Terra — com areia em desertos, praias e no fundo do mar — possa estar ficando carente disso. Para fins geológicos, todo grão entre 0.0625 mm e 2 mm de circunferência pode ser considerado areia (mais fino que isso, é lodo; mais grosso, é cascalho). Fruto da erosão de rochas por água e vento, os grãos são uma mistura de silício, quartzo, pedaços de conchas e, em volume crescente e preocupante, plástico. Em um processo de até meio bilhão de anos, escreve o geólogo britânico Michael Welland no livro Sand: A never ending story (“Areia, a história sem fim”, em tradução livre), esses grãos passaram por até oito ciclos de desgastes — nos desertos, afetados pelos ventos, tais grânulos tendem a ser mais redondos; nos rios, eles tendem a ser mais quadrados, em parte pela ação da água.  

Nem toda areia é igual e serve ao mesmo fim. Uma quadra de vôlei de praia, se fosse feita com o que vemos em praias do mundo todo, poderia causar lesões nos atletas dada sua dureza (a quadra que será vista nas olimpíadas deste ano tem entre 150 e 200 toneladas do minério trazidas especialmente para os pés da Torre Eiffel). A areia em uma praia não é recomendada para a construção civil — que usa 80% do volume extraído — por conter alto teor de sódio, o que influencia na elasticidade e corrosão do concreto.  

O mundo usa muita areia — em telas de celular, taças de vinho, em janelas de avião e para garantir que trens se movam ou freiem com segurança. O grosso desse consumo vai pôr de pé paredes, muros e prédios inteiros: a China, maior consumidora do insumo, usou entre 2019 e 2020 o volume de concreto consumido pelos EUA em todo o século 20. Esse consumo, muito além da capacidade de renovação do planeia, causa “efeitos negativos no meio ambiente em todo o mundo”, ameaçando “a existência de rios” em todo o mundo, segundo um relatório pioneiro da ONU sobre o tema, em 2014. Assim, o planeta pode ficar sem areia para uso humano em 2050. 

 

O crime no Brasil 

Seropédica, o lar dos areais ilegais que abre esta reportagem, é um dos vários polos de mineração do tipo. São Paulo tem seis grandes áreas de extração, indica o estudo de Ramadon, entre os rios Paranapanema, Paraíba do Sul, Ribeira e Piracicaba. A baixada fluminense e a cidade de Cabo Frio fornecem parte da demanda na região, além de locais como Camaçari na Bahia e a bacia do Tibagi, no Paraná.  

 

Accamtas / Google EarthAccamtas / Google EarthAreais em Seropédica. Todos os lagos fora de algum polígono são ilegais
 

Por aqui, o crime pode ocorrer não só pela instalação de areais ilegais, como também pela extração de mais minério do que é autorizado pelas agências reguladoras nas áreas de lavra. “Os dois tipos podem ocorrer”, diz Ramadon, mestre pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Autor do estudo de quase 350 páginas da Accamtas, o pesquisador aponta que diferenças geográficas podem ser cruciais: “Nos grandes centros, existe até algum tipo de fiscalização, mas nas regiões um pouco mais afastadas é mais difícil. Quem extrai e não declara que extraiu, mesmo tendo uma autorização, também está cometendo algo ilegal.” 

A Agência Nacional de Mineração (ANM), responsável por garantir a lavra legalizada desta atividade, não tem braços suficientes para a função. São 691 fiscais em 2024, segundo dados de transparência da ANM. Em 2010, eram 1.194 funcionários, uma queda de 42%. Sem conseguir lidar com tantas demandas, a ANM transformou em lavra apenas 36% dos pedidos de mineração no Brasil. O que acontece com os outros 64% é um mistério. 

No início do mês, policiais federais e a Polícia Civil do Rio de Janeiro agiram em um areal que operava ilegalmente desde 2012 em Seropédica. Após a empresa ter seus bens apreendidos, em 2023, a firma continuou a operar no local até a PF bater em sua porta. Foram apreendidos cinco caminhões, duas balsas, além de escavadeiras, um silo e 42 mil reais em dinheiro.

 

Sem fronteiras 

A rede de tráfico internacional de areia é uma realidade com exemplos práticos.  O minério que alimenta a economia americana, em estados como o Texas ou a Califórnia, pode estar vindo de minas ligadas ao crime organizado no México. O jornalista colombiano Rafael Moreno foi morto em 2016 após uma reportagem sua indicar a pilhagem do fundo de um rio para a extração que poderia beneficiar políticos locais em seu país de origem.  

E os sinais de escassez desse grão, aparentemente onipresente, já se refletem na economia: internacionalmente, o preço da areia sextuplicou nos últimos 25 anos. O Vietnã vê as casas no delta do Mekong começarem a afundar pela falta de areia, que dava estabilidade ao solo da região. O Camboja, país vizinho, proibiu a exportação de areia, por risco ambiental 

O impacto dessa extração desenfreada leva à turbidez da água, assoreamento de rios e a desfiguração de locais como florestas da mata atlântica, como é o caso de Seropédica. Ao cidadão comum, diz Ramadon, não há muito a fazer, pois tanto o cliente quanto a loja de material de construção compram a areia de uma mineradora que apresenta suas notas fiscais. “Como saber se a mineradora extraiu a areia de uma área em que tinha autorização para extrair? Como saber se a loja não comprou a areia de carroceiros, que foram no rio e buscaram a areia?”, diz Ramadon 

É um trabalho que compete, primariamente, ao Estado. “Para o cidadão”, diz Ramadon, “resta tomar conhecimento da importância desse crime no cenário mundial e cobrar das autoridades a diminuição desses surpreendentes índices de ilegalidade.” 

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  1. Muito interessante essa reportagem. Acho que nunca parei para pensar na questão da areia! Tendemos a focar somente em fauna e flora e ar quando se fala em problemas ambientais.

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