Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência BrasilEm que ponto grupos minoritários dirão “pronto, somos agora tão bem-tratados quanto qualquer outro grupo”?

Tenham a Humildade de Admitir a Própria Vitória

Em que ponto da história os grupos minoritários dirão “pronto, somos agora tão bem-tratados quanto qualquer outro grupo”?
05.07.24

Vamos imaginar que existe um grupo de pessoas que, na linguagem desgastada dos rappers e das crianças respondendo provas na escola, “sofrem preconceito da sociedade”: as empresas têm receio de contratá-los, digamos, só por uma característica aleatória qualquer que eles têm e que não prejudica o trabalho deles em nada; a polícia os revista com mais frequência que o normal, embora eles não cometam mais crime que os outros grupos, nesta suposição aqui; e de vez em quando eles são espancados com tacos de sinuca, ou arrastados festivamente por picapes.

Digamos também que décadas atrás eles tenham se organizado e começado a, muito compreensivelmente, reclamar da situação; que aos poucos um romance aqui, um filme acolá, tenha começado a mostrar pessoas desse grupo como criaturas simpáticas e injustiçadas; e que  a situação tenha gradativamente melhorado para eles.

Vamos agora separar esse processo todo em três etapas hipotéticas:

Na fase A, eles começam a reclamar, e a situação começa a melhorar — mas ainda é ruim.

Na fase B, eles foram bem-sucedidos e estão sendo tratados do mesmo jeito que todos os outros grupos da sociedade.

Na fase C, os benefícios que eles receberam não param de vir e de aumentar, e todos os romances e filmes e propagandas são sobre pessoas desse grupo sendo hiper bacanas o tempo todo, e eles estão sendo tratados melhor do que todos os outros grupos.

São fases hipotéticas, repito. São fases logicamente possíveis.

Meu ponto com toda essa história é que é um grande teste de caráter ver em que momento os membros de um grupo param de reclamar da sua situação e de se dizerem injustiçados; em que ponto do movimento de A para B e de B para C eles dizem publicamente: “Pronto, somos agora tão bem-tratados quanto qualquer outro grupo.”

Não há nenhum momento em que passe a ser útil dizer isso com todas as letras. Enquanto os membros do grupo não reconhecerem que estão pelo menos no ponto B, continuarão a receber mais e mais benefícios. Reconhecer que estão no ponto B (ou, santo Deus, no ponto C) é sair da banheira quentinha de hidromassagem do status crescente. Por isso algumas pessoas (olha a indireta) que conheço, e que pertencem a grupos diversos, se fazem, desculpe dizer a verdade, um pouco de sonsos.

Se a situação do meu grupo melhorou? Tá, talvez, tem umas coisas que melhoraram mesmo, tudo bem, mas ainda tem muuuuito pra mudar”. Sim, sim, meu amigo sonso, não tenho dúvida que ainda tem muita coisa pra você receber que você ainda não recebe — a lista de tesouros a serem recebidos é potencialmente infinita — pra que parar de reclamar agora?

*

Mas ainda tem muito pra mudar mesmo”, dizem os ativistas — e citam estatísticas tão absurdas que é difícil acreditar que alguém acredite nelas a sério, por mais conveniente e vantajoso que seja para eles acreditar. O fato é que mulheres de direita, negros de direita e gays de direita costumam citar estatísticas muito diferentes, com números menores e menos implausíveis de casos de violência e perseguição. Por que isso acontece? É porque eles gostam de correr o risco de serem assassinados, espancados, ou preteridos no mercado de trabalho? Não parece crível. Será possível que o que os distingue dos ativistas não seja tanto uma diferença ideológica, mas (Deus meu) de honestidade?

*

Querendo provar o ponto de que os homossexuais sofrem preconceito no mercado de trabalho audiovisual, a Associação Brasileira de Autores Roteiristas, a ABRA, fez recentemente uma pesquisa entre os seus associados (eles dizem “associadas“) para saber as porcentagens de gays, lésbicas e heterossexuais que trabalham como roteiristas. Certamente os gays seriam uma porcentagem tão pequena do mercado de trabalho que isso provaria uma resistência dos streamings e das produtoras contra as minorias, não?

Os resultados foram estes:

Gays: 37, 1%
Bissexuais: 23,6%
Lésbicas: 16,9%
Pansexuais: 10,1%
Assexuais: 3,4%
Heterossexuais: 5,6%

Bom, acontece; o resultado de algumas pesquisas às vezes nos surpreende. O importante é que obviamente a ABRA vai aceitar o resultado da sua própria pesquisa e mudar o modo como vê o mercado. Espero com confiança uma nota formal deles reconhecendo que, longe de serem perseguidos ou rejeitados, os gays dominam o mercado do audiovisual brasileiro, por uma margem gigantesca inclusive, e que talvez já seja hora de começar a se preocupar com os heterossexuais, e talvez dos assexuais também, coitados. Estou atualizando a minha caixa de entrada freneticamente esperando esse e-mail, e quando ele chegar eu os aviso nos comentários.

 

Alexandre Soares e Silva é escritor
 

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  1. É muito bom encontrar aqui no "papel digital" coisas que eu gostaria de estar falando em um palanque (com a devida proteção e escolta policial). Estou me sentindo minoria há mais de 2 anos. Sou branca, descendente de europeus, sou da classe média (dependendo de quem faz a estratificação). Iria falar mais só que não tem espaço para tanta reclamação. Obrigada Alexandre.

  2. Parabéns pelo artigo. Até que enfim alguém toca nesse tema sem medo de ser "cancelado" (aliás, cancelamento é bem coisa dessas minorias raivosas e xenófobas)

  3. Não está fácil pra ninguém. Além de ser competente a pessoa tem que estar num grupo que seja prioritário

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