Neymar via InstagramA esfera pública de que falava Habermas – será isso o que sobrou dela?

Carta aberta de Chico perde para treta de Neymar

Os abaixo-assinados de figurões da arte e da academia no Brasil são um capítulo especialmente patético do ocaso do intelectual público
07.06.24

Poderia escrever um artigo a respeito disto: um grupo de artistas e intelectuais divulgou uma carta pública ao presidente reivindicando que o Brasil rompa relações diplomáticas com Israel. Seria, argumentam eles, uma forma enfática de pressionar o governo Netanyahu a encerrar a “carnificina insuportável” em Gaza.

O artigo começaria questionando a infeliz escolha de palavras que aparece entre aspas no parágrafo anterior. Ao qualificar a carnificina em Gaza como insuportável, os redatores da carta indicam que talvez considerem outras carnificinas suportáveis. Seria o caso da carnificina na Ucrânia, que alguns dos 44 signatários aprovam tácita ou explicitamente?

Adiante, eu talvez questionasse a eficiência de rompimentos diplomáticos e bloqueios econômicos para conter guerras ou crimes contra a humanidade. Estaria me arriscando em temas que não domino, mas não é por isso que nunca escreverei esse artigo.

Ou será que já o estou escrevendo, apenas para dizer que não o escreverei? (Existe um nome para essa malandragem retórica: paralipse.)

Enfim, meu tema hoje não é Israel e Palestina. Meu tema é a irrelevância dessas cartas abertas, manifestos e abaixo-assinados em que artistas e intelectuais anunciam, sempre com um senso hipertrofiado da própria importância, suas sempre previsíveis posições.

Quando a curva de mortes pela Covid estava no pico, houve um punhado dessas declarações coletivas contra o governo Bolsonaro. Alguns nomes que hoje assinam a carta endereçada ao “estimado presidente” já apareciam lá. Deu em nada. Ninguém se mexeu por um muito justificável impeachment (o estimado Lula não gostava da ideia), e os mortos seguiram se empilhando.

Um amigo me chamou a atenção para a carta, talvez porque ela tenha algo a ver com meu artigo da semana passada, sobre “caetanismo” (Caetano Veloso não a assinou, mas Gilberto Gil e Chico Buarque estão lá). Por WhatsApp, esse amigo mandou o link da notícia em um portal governista, que tratou a história como coisa de máxima relevância. Mas a imprensa respeitável também noticiou o abaixo-assinado, ainda que sem alarde. 

Tento me colocar na infeliz posição de um editor de política em um jornal diário. Gostaria de dizer que eu cortaria o barato do estagiário que sugerisse, entusiasmado, uma matéria sobre a carta assinada por Emicida, entre outras figuras de sua admiração. Mas talvez eu fizesse o contrário e mandasse um estagiário desinteressado redigir a notícia. Dar atenção ao que intelectuais e artistas dizem é um reflexo condicionado da imprensa.

Tony Judt, historiador inglês que estudou os embates entre pensadores franceses como Albert Camus, Jean-Paul Sartre e Raymond Aron, também documentou o ocaso do intelectual público na Europa. Em Pós-Guerra, ele apresenta a Guerra do Iraque, em 2003, como o momento em que a irrelevância dos filósofos se tornou evidente. O alemão Jürgen Habermas e o francês Jacques Derrida publicaram então um artigo conjunto no Frankfurter Allgemeine Zeitung chamando a Europa a reencontrar seus valores iluministas para assim afirmar um caminho independente daquele tomado pelos Estados Unidos de George W. Bush. Em um arranjo continental, outros luminares do pensamento europeu, como o italiano Umberto Eco e o espanhol Fernando Savater, publicaram artigos de teor semelhante em jornais de seus países. Judt observa que muitos europeus eram contrários à guerra, mas nem por isso essa enxurrada de textos ganhou repercussão: “Cem anos depois do Caso Dreyfuss, cinquenta anos depois da apoteose de Jean-Paul Sartre, os intelectuais mais proeminentes da Europa fizeram um chamado – e ninguém ouviu”.

A recente carta brasileira contra a guerra em Gaza não encontra um termo de comparação apropriado na iniciativa europeia contra a Guerra do Iraque. O compósito muito brasileiro de figuras acadêmicas, jornalistas e medalhões da MPB não será tão típico do sistema intelectual da França ou da Alemanha. Além disso, 44 signatários é número ralo para os padrões dos abaixo-assinados da esquerda brasileira. Ainda assim, o esvaziamento da voz autorizada pelo sistema cultural é notável também no Brasil. E torna-se mais claro no contraste entre a sentenciosa carta a Lula e um vulgar barraco entre celebridades.

A proposta de rompimento com Israel perdeu feio, em atenção pública, para um assunto que nem de longe tem o peso moral do conflito na Faixa de Gaza: o projeto de emenda constitucional que retira da União a propriedade exclusiva dos chamados “terrenos de marinha”.

Mal caracterizado como uma tentativa de privatizar as praias brasileiras, o projeto tem consideráveis repercussões fiscais e ambientais. Mas a disputa sobre os terrenos de marinha só ganhou tração em redes sociais e conversas de boteco porque detonou uma treta entre Neymar e Luana Piovani.

A esfera pública de que falava Habermas – será isso o que sobrou dela?

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

As opiniões emitidas pelos colunistas não necessariamente refletem as opiniões de O Antagonista e Crusoé

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO