Pedro Souza / Atlético MG via FlickrA nota indica que a CBF não sabe exatamente o que fazer. Não tem um plano. Parece ter feito o que soava bem

Paralisando para a torcida

A confusa decisão da CBF de suspender o Brasileirão expõe outra tragédia, bem menos dramática que a das enchentes no Rio Grande do Sul, mas crônica: a do futebol brasileiro
17.05.24

A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) decidiu interromper por duas rodadas o Campeonato Brasileiro. Na nota em que anunciou a decisão, contudo, não está apontado um motivo para fazê-lo. A razão é a tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul, que já impediu Grêmio, Internacional e Juventude de disputar duas rodadas do Brasileirão, mas a CBF não deixou claro o que exatamente os clubes gaúchos ganharão com a paralisação geral, nem o que será feito ao longo desse período.

A entidade também não esclareceu como pretende rearranjar os jogos que não serão disputados nos dois próximos finais de semana. Disse apenas o seguinte, ao mencionar que “após consultar os 20 clubes participantes da Série A do Campeonato Brasileiro e receber o pedido de 15 equipes pela suspensão da competição até o dia 27 de maio, a CBF reitera o compromisso público assumido de transparência e diálogo pela atual gestão e suspende as rodadas 7 e 8 do certame”:

“A CBF informa também que a reunião do Conselho Técnico Extraordinária da Série A está mantida para o dia 27 de maio. Na conferência, os clubes vão deliberar sobre aspectos técnicos das competições bem como a situação de registro e transferência de atletas, questões jurídicas com relação aos acessos às competições internacionais como Libertadores, Sul-Americana e Mundial de Clubes e questões de direitos de transmissão e patrocínios.”

A nota indica que a CBF não sabe exatamente o que fazer. Não tem um plano. Parece ter feito o que soava bem. Demonstra solidariedade aos clubes do Rio Grande do Sul, mas por apenas duas rodadas. É o bastante? “Não se pode olvidar que o esporte e a sociedade caminham concomitantemente, não podendo se separar ainda mais em um momento tão difícil para a população brasileira”, diz a entidade presidida — sob decisão liminar — por Ednaldo Rodrigues.

Talvez fosse o caso, então, de cancelar o Brasileirão. A reconstrução do Rio Grande do Sul não vai terminar neste ano. Os clubes gaúchos dificilmente conseguirão jogar em seus próprios estádios pelas próximas semanas — o Inter projeta de dois a três meses para voltar a usar o Beira Rio, enquanto a Arena do Grêmio só deve estar disponível no segundo semestre. Quem cobra isonomia acha que esses clubes estarão em pé de igualdade com os adversários mandando jogos fora de suas casas?

Está claro que a questão é muito mais complicada do que um gesto de solidariedade poderia dar conta. E também que o futebol brasileiro não tem um comando capaz de organizar o meio de campo. Ednaldo sinalizou para as consequências potenciais da paralisação, como a extensão do calendário para além deste ano e os impactos contratuais, mas optou por simplesmente seguir a corrente gerada por 15 agremiações bem intencionadas.

Os clubes brasileiros e seus torcedores deram demonstrações muito eloquentes de solidariedade aos gaúchos nas últimas duas semanas, com campanhas de arrecadação de donativos e rendas revertidas para as vítimas da tragédia, mas sem uma coordenação para organizar esses esforços — e, principalmente, sem ninguém para dar algum norte à sequência do campeonato. Aliás, a Copa do Brasil não vai parar nesse período, porque envolve muito mais do que os 15 clubes bem intencionados.

“O mineiro só é solidário no câncer”, diz a célebre frase que Nelson Rodrigues atribui a Otto Lara Resende na peça que leva o nome do jornalista mineiro — e mais conhecida pelo segundo título, Bonitinha, Mas Ordinária. “E o que há por trás? Sim, por trás da frase? O mineiro só é solidário no câncer. Mas olha a sutileza. Não é bem o mineiro. Ou não é só o mineiro. É o homem, o ser humano. Eu, o senhor ou qualquer um só é solidário no câncer. Compreendeu?”, diz Edgard a Peixoto.

A frase, que Otto Lara Resende nega ter dito, perturba todas as personagens da peça, diante da interpretação de que sua constatação autorizaria o mau-caratismo — “E pra que pudores ou escrúpulos se o homem só é solidário no câncer?”; “E se o homem é isso, tudo é permitido”, refletem os canalhas da história, para quem “a frase do Otto é mais importante do que Os Sertões de Euclides da Cunha” e “a frase do Otto é mais importante do que todo o Machado de Assis!”.

É da natureza desse tipo de tragédia que as bússolas morais se descalibrem e que os sentimentos tomem a frente da razão. Atrasar ainda mais jogos no intenso calendário brasileiro obviamente vai aumentar o tamanho do problema sem necessariamente reduzir os prejuízos dos maiores prejudicados do Sul. A confusa decisão da CBF só expõe outra tragédia, bem menos dramática que a das enchentes, mas crônica: a do futebol brasileiro.

 

Rodolfo Borges é jornalista 

 

As opiniões emitidas pelos colunistas não necessariamente refletem as opiniões de O Antagonista e Crusoé

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. A CBF serve apenas para arrecadar dinheiro seja com a seleção, seja com o campeonato. É um antro de corrupção e não serve pra organizar nem torneio de bairro

Mais notícias
Assine agora
TOPO