WikiCommonsMegan Rapinoe se tornou símbolo da luta por igualdade no futebol

Ninguém é obrigado a gostar de futebol feminino

Se está fora de cogitação reduzir as dimensões do campo, que o público seja convencido, e não coagido a torcer
23.06.23

A Copa do Mundo de Futebol Feminino começa em um mês e já é possível ouvir os ecos das reclamações sobre falta de interesse. A audiência da Rede Globo no último fim de semana caiu quase que pela metade com a troca do Brasileirão masculino, interrompido durante a data Fifa, pelas finais do Brasileirão feminino. Não há nada de errado em querer atenção e prestígio, mas as estratégias adotadas nos últimos anos pelos defensores da modalidade, raivosas e baseadas em ofensas, semearam implicância. Como torcedor do São Paulo de Sissi e Kátia Cilene, as precursoras de Marta, que dominaram os campos do país no fim da década de 1990, dou minha colaboração.

A americana Megan Rapinoe se tornou símbolo da luta por igualdade entre homens e mulheres no futebol. A jogadora da seleção dos EUA liderou uma ação judicial apresentada pelas colegas contra a federação de futebol do país demandando salários iguais. O contexto dos EUA, onde o futebol feminino se popularizou antes do masculino, ajuda a entender o incômodo, mas as seleções masculina e feminina de qualquer país estão inseridas em mercados totalmente diferentes. A negativa do juiz responsável pela causa das atletas americanas é eloquente: “A equipe feminina recebeu mais em termos acumulados e em média por jogo do que a equipe masculina durante o período em causa”. Apesar de a alegação das jogadoras não fazer sentido, a federação fechou um acordo de indenização.

A militância de Rapinoe, baseada na política identitária, parte da impressão de que as diferenças nos salários e nos valores das premiações são fruto de algum tipo de discriminação. Portanto, bastaria vontade — ou boa vontade — para que tudo fosse diferente e o futebol feminino recebesse a atenção que merece. Buscando entender de onde sai esse raciocínio, fui folhear Women in love (Bantam Classics), em que D.H. Lawrence dissecou tão bem a alma feminina que levou Simone de Beauvoir a desancá-lo em páginas e mais páginas de O segundo sexo (Nova Fronteira). Das minhas notas no livro, emergiu um trecho longo, mas sugestivo.

Hermione sabia que estava bem vestida; ela sabia que era socialmente igual, se não muito superior, a qualquer pessoa que provavelmente encontraria em Willey Green. Ela sabia que era aceita no mundo da cultura e do intelecto. Ela era uma KULTURTRAGER, um meio para a cultura de ideias. Com tudo o que era mais elevado, seja na sociedade ou no pensamento ou na ação pública, ou mesmo na arte, ela estava na frente, ela se movia entre os primeiros, estava em casa com eles. Ninguém poderia derrubá-la, ninguém poderia zombar dela, porque ela estava entre as primeiras, e aqueles que estavam contra ela estavam abaixo dela, seja em posição, seja em riqueza, ou em alta associação de pensamento, progresso e compreensão. Então, ela era invulnerável. Durante toda a sua vida, ela procurou tornar-se invulnerável, inatacável, além do alcance do julgamento do mundo”, descreve Lawrence. Mas o mais significativo ainda está por vir.

E ainda assim sua alma era torturada, exposta. Mesmo subindo o caminho para a igreja, confiante como estava de que em todos os aspectos ela estava além de todo julgamento vulgar, sabendo perfeitamente que sua aparência era completa e perfeita, de acordo com os primeiros padrões, ainda assim ela sofria uma tortura, sob sua confiança e seu orgulho, sentindo-se exposta às feridas e ao escárnio e ao despeito. Ela sempre se sentiu vulnerável, vulnerável, sempre havia uma brecha secreta em sua armadura. Ela mesma não sabia o que era. Era uma falta de um eu robusto, ela não tinha suficiência natural, havia um vazio terrível, uma falta, uma deficiência de estar dentro dela”, completa o britânico. Quem quiser saber como Hermione tenta preencher o que falta que busque o clássico de Lawrence, porque eu preciso voltar ao gramado.

Não é possível obrigar alguém a gostar de futebol feminino, e muito menos isso seria alcançado por meio do constrangimento, de acusações de misoginia ou qualquer coisa do gênero. A disputa dentro de campo tem simplesmente de interessar à audiência, e os times formados por mulheres já têm metade do caminho andado: são, em sua maioria, agremiações que já possuem torcidas. Mas é preciso reconhecer que o futebol masculino e o futebol feminino são dois esportes diferentes. Na demonstração mais recente, o time de ex-jogadores do britânico Wrexham fez 12×0 contra ex-jogadoras da seleção dos EUA. A partida foi disputada em um campo de dimensões reduzidas, que me pareceu ideal para a prática do futebol feminino.

Até hoje não ouvi um bom argumento para não reduzir o tamanho das balizas ou do campo de jogo em campeonatos de mulheres, como ocorre com a rede do vôlei feminino. Sempre que surge, o assunto é abordado com evasivas (como “melhor seria investir mais na modalidade”) e encarado como uma forma de diminuir as mulheres. Algumas atletas ficam até ofendidas — quando, na verdade, essa seria talvez a maneira mais eficiente de tornar o jogo mais dinâmico e atraente. É um orgulho bobo, mas, como não há qualquer indicação no horizonte de que as dimensões do campo serão alteradas, resta o trabalho de convencimento para atrair o público.

O torcedor precisa ser cortejado para acompanhar os jogos, e não ofendido por esperar mais do que deveria do futebol feminino. Quem assiste a partidas de futebol está em busca de emoção. O jogo das mulheres é mais lento, tem menos atrito e menos intensidade, mas, por conta de tudo isso, o desafio é maior, assim como as proezas. É uma narrativa a ser explorada.

Comparar o desempenho dos homens e das mulheres, como se arriscou com Marta e Neymar em passado recente, é um tiro no pé. Não faz sentido, soa falso, artificial, cínico. O tão reclamado investimento no futebol feminino dificilmente virá de graça. Ainda que se criem cotas ou que os clubes sejam obrigados a investir, o interesse da audiência não será desenvolvido e sustentado artificialmente. Para além dos títulos, as mulheres precisam conquistar a torcida.

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  1. Você esqueceu de abordar a solução mais simples para esse problema: as próprias mulheres começaram a assistir o futebol feminino. Asssim que elas se interessem pelo esporte o problema estará resolvido na raiz: audiência. Agora se nem as próprias mulheres querem resolver o problema delas mesmos porque nós temos que mudar algo?

    1. Eu não me interesso por futebol masculino e nem pelo feminino. Do segundo nem tomo conhecimento. Pode até ser preconceito, mas acho que futebol não é um esporte feminino. E nem box ou luta livre. Não gosto e pronto.

  2. Interessante a conversa de que as jogadoras de futebol femnino tem que ganhar o mesmo que os jogadores de futebol masculino. Algumas perguntas ficam no ar. 1- Entre as jogadoras os salários são iguais? 2- Elas ganhariam salários iguais ao de quem: da Marta ou do reserva do lateral direito do Volta Redonda?

  3. Daqui a pouco uma dessas Excrescências do Supremo Tribunal da Fajutice determina que todos serão obrigados a assistir futebol femimimino… ops, feminino? Sério?

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