Rodrigo Coca/Agência CorinthiansO técnico durante apresentação no Corinthians

Cuca, o som e a fúria

A carreira do treinador vem sendo progressivamente afetada pelo caso de estupro, à medida que a sociedade brasileira se sensibiliza em relação à violência contra as mulheres
27.04.23

O ex-jogador Alexi Stival iniciou a carreira como técnico de futebol em 1998, treinando o Uberlândia. O professor Cuca despontou para o público nacional cinco anos depois, com uma campanha de recuperação que evitaria o rebaixamento do Goiás no Campeonato Brasileiro. Chamou a atenção do gigante São Paulo, onde não obteve sucesso, mas ajudou a formar o time que seria campeão mundial em 2005. Desde então, ganhou campeonatos regionais até levantar a Copa Libertadores com o Atlético Mineiro, em 2013, e ganhar dois títulos brasileiros, pelo mesmo Atlético, em 2021, e pelo Palmeiras, em 2016. Hoje, apesar dos sucessos recentes, não tem condição de treinar nenhum clube gigante do Brasil, por algo que aconteceu 10 anos antes de estrear como treinador.

Cuca foi condenado em 1989 em um caso de estupro de uma menina de 13 anos na Suíça, ocorrido dois anos antes, em Berna. Ele e outros três atletas do Grêmio estavam no quarto de hotel onde a violação teria ocorrido, durante uma excursão do clube gaúcho pela Europa. À época, o então jogador disse que a menina subiu ao apartamento para manter relação consentida com um dos colegas, cujo nome nunca revelou, e que todos acabaram envolvidos numa trama jurídica de disputa da guarda pelos pais da vítima. Os quatro permaneceram 30 dias detidos e acabaram condenados a 15 meses de prisão — não chegaram a cumprir a pena, porque o Brasil não extradita seus cidadãos.

O passado nunca morre. Nem sequer é passado”, diz o advogado Gavin Stevens a Temple Drake, em Réquiem por uma freira (Nova Vega), de William Faulkner. Essas são duas das frases mais emblemáticas do autor americano, uma síntese de sua obra, na qual as personagens vivem assombradas pelo que fizeram, como em Luz em agosto (Companhia das Letras) e O som e a fúria (Companhia das Letras). O enredo do livro de onde a constatação sobre o passado saiu envolve o assassinato de um bebê, uma condenação à morte e um estupro — Faulkner não pega leve.

A carreira de Cuca como treinador vem sendo progressivamente afetada pelo caso de estupro, à medida que a sociedade brasileira se sensibiliza em relação à violência contra as mulheres. Ele já havia enfrentado protestos durante as passagens recentes pelo Atlético Mineiro, mas as vitórias falaram mais alto. Desta vez, à frente do clube com a segunda maior torcida no país, o técnico não resistiu a dois jogos — uma derrota e uma vitória suada contra o Remo, pela Copa do Brasil.

As redes sociais desempenham papel de catalisador das críticas, e o fato de as mulheres estarem muito mais envolvidas com o futebol não lhe ajuda. “‘Respeita as Minas’ não é uma frase qualquer”, declarou em nota o time feminino do Corinthians três dias antes da queda de Cuca. Horas antes de ele anunciar a saída, quando o treinador ainda era festejado pelos jogadores do time na Arena Corinthians, após a classificação para as oitavas de final da Copa do Brasil nos pênaltis, Ary Borges, ex-jogadora do Palmeiras e frequentadora da seleção brasileira, escreveu: “Eles abraçaram o cara… Que loucura”.

Diante das pressões, Cuca disse que enfim vai se defender das acusações. “Saio neste momento porque não era como eu queria. Você espera a vida inteira por isso, e sai dessa maneira. Contratei o doutor Bialski, criminalista, e a doutora Bia, que vão fazer todo o trabalho que nunca pude fazer, nunca contratei ninguém. Quem julga, também pode ser julgado”, comentou, ao explicar a decisão de deixar o Corinthians. “Se Deus quiser, eu volto um dia para poder fazer um trabalho do começo ao fim”, finalizou.

É difícil imaginar que Cuca consiga voltar em paz ao Corinthians ou a qualquer outro time grande no Brasil. Ainda que consiga provar de alguma forma que não se envolveu no abuso de uma criança, ele virou um dos símbolos públicos de agressão contra mulheres no ambiente do futebol. O mesmo ocorreu com Robinho, que não conseguiu jogar profissionalmente após ser condenado, também por estupro, na Itália, e com Daniel Alves, que está detido desde 20 de janeiro, acusado de violentar uma mulher numa boate de Barcelona. O passado nunca morre, mas os tempos são outros.

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  1. Sou absolutamente contra cancelamentos e linchamentos virtuais, mas o caso do Cuca é diferente: ele foi condenado ( à revelia por sua escolha) por estuprar uma menor e o pior é que nunca pagou por isso pois escapou pro Brasil. Se é inocente, pois que o prove (dessa vez o ónus recaia no acusado, já que já foi condenado), até lá a repulsa da sociedade por ele é compreensível. Já os ataques a sua família não.

  2. O mundo ficou menor e a consciência do povo maior. A Impunidade começa a entrar em declínio e caminha para sair de moda. Torcemos que ocorra em todos os campos possíveis, inclusive a corrupção…

  3. Sou sempre contra que uma pessoa tenha sua carreira e vida arruinadas pelo tribunal das redes sociais. Mas Cuca enfrenta essa condenação social por um crime de estupro de menor, com sentença judicial transitada e sem nunca ter cumprido pena. Não é igual a um mero cancelamento de internet, é muito mais sério.

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