ONU/Kim HaughtonSegundo a Carta da ONU, defender um país agredido não é incentivar guerra

Uma perigosa linha foi ultrapassada

Lula e o PT abandonaram a (falsa) neutralidade que vinham afetando e tomaram partido abertamente: ao lado das autocracias, contra as democracias liberais
20.04.23

Vejamos como tudo começou. Ou, pelo menos, como tudo apareceu com conotações repugnantes para a consciência democrática. Há cerca de uma semana, Lula declarou (está gravado em vídeo e eis a degravação com algumas observações interpoladas):

Eu tenho uma tese que eu já defendi ela com (Emmanuel) Macron, com Olaf Scholz, da Alemanha, com (Joe) Biden e ontem discutimos longamente com Xi Jinping. Ou seja, é preciso que se constitua um grupo de países dispostos a encontrar um jeito de fazer a paz. É preciso ter paciência para conversar com o presidente da Rússia, é preciso ter paciência para conversar com o presidente da Ucrânia, mas é preciso sobretudo convencer os países que estão fornecendo armas e incentivando a guerra, pararem“.

Como assim “países que estão fornecendo armas e incentivando a guerra“? A Ucrânia foi vítima de uma agressão militar. Se não for ajudada, deixará de existir como nação. Segundo a Carta da ONU, defender um país agredido não é incentivar guerra.

Eu acho que a China tem um papel muito importante. Eu continuo reiterando que a China, possivelmente seja o papel mais importante. Agora, outro país importante é os Estados Unidos. Ou seja, é preciso que os Estados Unidos parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz“, disse Lula.

Os EUA não estão incentivando guerra nenhuma. Essa é a tese de Putin, que Lula tolamente comprou. Estão ajudando uma democracia a se defender da agressão de uma ditadura. Este é o papel que se espera de qualquer democrata.

É preciso que a União Europeia comece a falar em paz, pra gente poder convencer o Putin e o Zelensky de que a paz interessa a todo mundo e a guerra só está interessando, por enquanto, aos dois“, disse Lula.

Como é que é? Por que a guerra interessa a Volodymyr Zelensky? A Ucrânia foi invadida militarmente. Se não se defendesse, desapareceria como nação.

A fala é asquerosa, errada e antidemocrática. É um alinhamento de Lula às narrativas das autocracias russa e chinesa, contra as democracias mais avançadas do planeta.

O conteúdo acima foi repetido, com variações, em duas declarações de Lula: uma na China e outra nos Emirados Árabes Unidos.

Logo entraram em cena os “bombeiros”, quer dizer, os passapanistas que querem salvar Lula e o PT de si mesmos para fazer “o governo dar certo”. E aí começaram a surgir na imprensa e na rede suja de sites e blogs do PT, enxurradas de desculpas: “foi sem querer”, “foi falta de atenção”, “foi um deslize”, “foi um exagero”, “foi um erro pontual”, “ele estava cansado”, “ele falou, mas não foi para valer (tanto é assim que a política externa do Brasil de condenar a invasão russa na Ucrânia não mudou)”, “ele errou nesse ponto, mas não é hora de criticá-lo (do contrário Bolsonaro volta)”.

Todavia, não. Não foram incontinências verbais de Lula. Ele pensa isso mesmo. Mas o pior é que os dirigentes e militantes do PT pensam igual. A narrativa anti-imperialista e antineocolonialista da Guerra Fria está entranhada no partido. Ou seja, as falas de Lula na China e nos Emirados não foram um tropeço, um descuido, uma incontinência verbal, um escorregão diplomático. Lula não inventou nada: apenas repetiu, exatamente, o mesmo discurso de todos os partidos pró-Putin na Europa. Ele não errou. Ele se alinhou.

O que se pode concluir desses episódios?

Lula e o PT abandonaram a (falsa) neutralidade que vinham afetando e tomaram partido abertamente: ao lado das autocracias, contra as democracias liberais. Se os bolsonaristas já não eram, agora os petistas (pelo menos os que seguirão Lula nessa deriva autocrática) também não serão mais players válidos da democracia liberal.

Temos de conversar sobre isso porque, embora pareça uma continuidade com o que vinha acontecendo, não é. A viagem à China sinalizou uma ruptura do PT com a ordem democrática liberal. A conjuntura mudou. Não no plano internacional, mas aqui mesmo no Brasil. O próprio Lula desmentiu a justificativa dos passapanistas governistas de que as relações Brasil-China se guiam por interesses comerciais. Ele disse claramente, com todas as letras, que está se aliando à ditadura chinesa não por razões comerciais. Vejamos:

Algumas horas antes Lula havia declarado, em 14 de abril:

A compreensão que o meu governo tem da China é a de que temos que trabalhar muito para que a relação Brasil-China não seja meramente de interesse comercial… Queremos que a relação Brasil-China transcenda a questão comercial“. Ele disse também querer “elevar o patamar da parceria estratégica e, junto com a China, equilibrar a geopolítica mundial“. E ainda: “Ninguém vai proibir que o Brasil aprimore a sua relação com a China“.

Não são só palavras, não é só retórica para animar a militância petista que ainda está exilada na primeira Guerra Fria. Lula assinou memorandos de entendimento sobre cooperação em informação e comunicações, entre o Grupo de Mídia da China e a Secretária de Relações Institucionais do Brasil, e acordos de coprodução televisiva e entre a agência de notícias Xinhua e a EBC. Ora, relações comerciais podemos (e devemos, se não houver sanções internacionais) estabelecer com qualquer país. Alianças políticas (geopolíticas) e nas áreas de informação e comunicação com ditaduras, jamais.

Na declaração conjunta China-Brasil, assinada por Xi Jinping e Lula, está escrito: “O Brasil recebeu positivamente a proposta chinesa que oferece reflexões conducentes à busca de uma saída pacífica para a crise“. Ora, a proposta chinesa é pró-Rússia. Não exige a retirada das tropas invasoras de Putin.

Talvez seja desnecessário dizer que quando a ditadura chinesa fala em paz é melhor fazer um seguro de vida. É a paz de Xinjiang? É a paz de Hong Kong? É a paz do Tibet? É a paz que o imperador Xi quer levar à Taiwan? É a paz da Praça da Paz Celestial, onde manifestantes foram massacrados pelo governo em 4 de junho de 1989?

 

Anti-imperialismo mofado

Prevaleceu o anti-imperialismo mofado. Populistas de esquerda vivem dizendo que não se pode tomar posição a favor do EUA, que são um país imperialista que nunca respeitou a soberania alheia, apoiou regimes ditatoriais etc. Com base nisso, apoiam as maiores autocracias do mundo.

É por isso que apoiam (declarada ou disfarçadamente, em nome da “paz” ou do “não alinhamento ativo“) a Rússia ditatorial de Vladimir Putin e a China quase-totalitária de Xi Jinping. Porque essas autocracias são contra os EUA imperialistas.

Mas os democratas liberais nada têm a ver com os EUA que, já faz tempo, não aparecem nos primeiros vinte lugares em todos os rankings sérios de democracia. Dito isso, é preciso ver que nenhum país pode ser julgado pelo seu passado. Como se a entidade que apoiou as ditaduras militares na AL nas décadas de 60-70 ou que invadiu o Iraque em 2003 fosse a mesma dos recentes esforços de Biden de articular uma coalizão de democracias liberais para conter as autocracias. Depende muito das circunstâncias e dos governos. Os EUA sob Bush e Trump não são a mesma coisa que sob Obama e Biden. Recuando mais no tempo: os EUA só se tornaram uma democracia eleitoral em 1921 e só viraram uma democracia liberal em 1969 (segundo os critérios do V-Dem, da Universidade de Gotemburgo). E estão a um passo de perder tal condição. Se fossemos avaliar os países do ponto de vista da sua história, a Bélgica, uma das destacadas democracias liberais da atualidade, teria de ser julgada pelo passado do Império Colonial Belga sob o rei Leopoldo II (1865-1909).

Os democratas têm a ver com os regimes que melhor atendem aos indicadores de democracia, que são chamados de full democracies (os EUA são uma flawed democracy) ou liberal democracies. Regimes como — segundo o V-Dem, a The Economist Intelligence Unit e a Freedom House (as três mais conceituadas instituições que monitoram a democracia no mundo) — os que vigem na Alemanha, na Austrália, no Chile, na Dinamarca, na Finlândia, na Holanda, na Irlanda, em Luxemburgo, na Noruega, na Nova Zelândia, na Suécia e na Suíça.

Tudo indica que Lula e o PT vão avançar em direção à autocracia, mesmo na ausência de condições objetivas. Sim, é o equivalente a (ou um substituto de) uma “revolução” à revelia das condições objetivas. Porque, subjetivamente, os populistas de esquerda lulopetistas concluiram que é agora ou nunca. No entanto…

 

Uma perigosa linha foi ultrapassada

Nas falas, nos gestos e atitudes, de Lula na China, uma perigosa linha foi ultrapassada de modo irreversível. Lula não pode, como Bolsonaro, desdizer o que disse (ainda que já tenham começado a pressioná-lo para fazer isso). Mas não há para quem fazer uma cartinha pedindo desculpas.

Embora Lula sempre tenha pensado assim — e relativizado e desvalorizado as democracias diante das ditaduras de esquerda, que supostamente cuidam do seu povo (melhor do que as democracias, segundo ele) — isso nunca foi explicitado como tomada de posição diante de um conflito definidor de alinhamento a campos em disputa.

E Lula alinhou definitivamente o PT (e temporariamente o governo brasileiro) ao bloco das maiores autocracias do planeta contra as democracias liberais. Derrubou até mesmo o biombo dos interesses comerciais, afirmando que seu propósito é político: mudar a geopolítica mundial.

A viagem à China é um marco na trajetória de um partido que nunca conseguiu sair do ambiente tóxico da primeira Guerra Fria e que sonha “fazer a revolução” nas novas condições do mundo após a queda do muro de Berlim, usando a via eleitoral contra a democracia liberal.

Dirigentes e militantes do PT acompanham em peso Lula nessa deriva autocrática. Basta conversar com qualquer um deles ou examinar as suas postagens nas mídias sociais para comprovar isso. Estão unificados no combate ao imperialismo americano e ao neocolonialismo eurocrata.

Como os interesses comerciais do país e os interesses políticos do PT foram imbricados, mesmo que houvesse arrependimento pelo mau passo, não haveria volta. As megaditaduras que compõem majoritariamente os Brics (embrião do bloco autocrático) não assimilariam tal guinada.

Só um novo governo — que se alinhasse à coalizão das democracias liberais — poderia tentar consertar o malfeito. Enquanto o neopopulismo lulopetista estiver no governo, não há reparação possível, nem por ato de vontade, nem por imposição das circunstâncias.

No entanto, antes disso, as forças democráticas (não populistas) que restaram no Brasil devem se articular para resistir a essa investida aberta de caráter antiliberal. Ou fazem isso agora, ou vão desaparecer como atores minimamente relevantes da cena pública.

 

Augusto de Franco é escritor

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  1. Minha esperança é o "Sopa de Chuchu" que logo logo vai se desconectar do Luísque Mula pra mostrar a sociedade que é uma opção palatável, afinal tá ali pra isso. No estilo "Vampirão" que se desconectou da ANTA assim que percebeu que era cada vez mais clara evidente que ela seria defenestrada. O Eduardo Cunha...apesar de "não valer o que o gato enterra"....percebeu que só assim poderia tirar o País do caos que os PTralhas estavam nos levando. Que venha o Lira....

  2. Artigo magistral! Parabéns Sr. Augusto de Franco. Lula sempre nos envergonhou, principalmete pelas escolhas do mal que sempre abraçou. Agora está se superando, nos envergonhando perante o mundo civilizado e democrático. Está na hora de pensarmos com mais afinco no impeachment desse mau caráter. Não podemos deixar esse pulha no poder até 2026 pois fará de tudo para ser reeleito ou a seu escolhido como sucessor. Viva a Lava Jato. Em 2026, nem Lula nem Bolsonaro.

  3. Sinto muito, porém já é tarde. A hora passou, foi em 2022. Mas a turma que fezuéli não percebeu isso naquele momento. Queriam tirar Bolsonaro de qualquer jeito e fizeram-se de cegos para o MUITO PIOR que estavam colocando no lugar.

  4. O último parágrafo é o resumo da ópera, os decentes e lúcidos do país precisam se organizar e combater a escumalha ptralha comandada pelo Descondenado.

  5. A diplomacia deste desgoverno é clara e tenta unir raposas a hienas algo impossível já que ambas se nutrem da carniça dos pobres ... sob visível esquizofrenia será que acha que países tradicionais e de cultura bem diferente engolirão seus insanos devaneios? desconfio que ele quer é rosetar e deixar o circo pegar fogo no galinheiro tupi pois seu gabinete é o Aero-51 agora sem aquela bela dama clandestina a levar milhões de euros para a lavanderia de Lisboa ... ainda lembram dela?

  6. Texto perfeito... só faria uma correção: o Brasil há tempos não é uma democracia... somos uma Cleptocracia! (Prisão em segunda instância e Voto distrital já!)

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