Rodolfo Borges/OAntagonistaO livro de Michael Cox: darwinismo aplicado ao futebol mundial

A origem dos escretes

A evolução do futebol mundial deixou o Brasil de fora
20.04.23

Charles Darwin define seleção natural como “a preservação de variações favoráveis e a rejeição de variações prejudiciais”. No clássico A origem das espécies, o naturalista britânico relata a viagem de cinco anos que empreendeu ao redor do mundo para desenvolver sua revolucionária teoria sobre a evolução. Guardadas as devidas proporções, Michael Cox faz o mesmo em Entre Linhas (Editora Grande Área), mas percorrendo os gramados da Europa, em meio a animais bem diferentes.

O debate tático chegou tarde ao Brasil — apenas depois de nossa técnica não dar mais conta de se impor sobre a disciplina europeia. A seleção brasileira passou a perder para concorrentes de segunda linha, como Bélgica e Croácia, mesmo ostentando craques disputados nos maiores mercados do mundo, e passamos a importar treinadores estrangeiros aos montes. Enquanto nos distraíamos com a habilidade de Garrincha, Pelé, Zico, Djalminha e Romário, o futebol evoluía no Velho Continente.

Tudo começou com o futebol total da Laranja Mecânica de Rinus Michels, na década de 1970, mas foi na década de 1990 que o abismo começou a se abrir. Cox aponta o surgimento da regra que impede o goleiro de segurar com as mãos uma bola recuada como um marco para a evolução tática. As dificuldades criadas pela interação com os pés em torno da própria área criou a necessidade de os defensores desenvolverem habilidades que não eram exigidas até então.

Era o ambiente perfeito para que florescesse a filosofia holandesa de ocupação do espaço, ampliando o campo por meio de dois pontas bem abertos quando se tem a bola, e sufocando o adversário quando não se tem o comando das ações. Johan Cruyff e Louis van Gaal rivalizaram pela herança de Michels ao comandarem o Ajax na virada da década, o primeiro fazendo o time jogar para o craque, o segundo fazendo o craque jogar para o time.

Van Gaal foi tricampeão holandês, ganhou uma Copa da Uefa e uma Champions League na década de 1990 com estrelas como Kluivert, Overmars, Davids, Bergkamp e Van der Sar. Cruyff levou quatro campeonatos espanhóis com o Barcelona e uma Champions League, com Laudrup, Gardiola, Stoichkov e Koeman.

As condições de temperatura e pressão começaram a mudar quando o Ajax perdeu para a Juventus a final da Champions de 1996. Na mesma época, foram alteradas as regras para a contratação de jogadores no continente, o que concentrou os maiores craques do mundo no maior campeonato da época, a Serie A. O pragmatismo defensivo da escola italiana, conhecido como catenaccio e notabilizado pela presença de um líbero à frente da linha de defesa, superou o frenesi holandês de troca constante de posições.

Marcello Lippi, Fabio Capello e Giovanni Trapattoni passaram a comandar os maiores times da Europa da forma mais chata e eficiente possível. Com todo mundo se defendendo, destacaram-se os times com os jogadores mais brilhantes, e ninguém foi melhor do que Zinedine Zidane naquele final de década. O francês foi responsável, junto com o compatriota Thierry Henry, por girar a roda mais uma vez, em favor da França.

A velocidade de Henry, Anelka e Cissé se impôs sobre a solidez italiana e os azuis ganharam quase tudo, inclusive três edições da Premier League com o Arsenal de Arsène Wenger, Henry, Pires e Vieira — uma delas invictos, feito único até hoje. A dominância francesa se consolidou com o surgimento de Karembeu e Makélélé, que cristaliza a figura do carregador de piano no meio-de-campo defensivo — hoje incorporada por Kanté na seleção francesa.

Para conter o vigor francês, ergueu-se o paredão português de José Mourinho, com seu futebol milimetricamente estruturado, adornado por Luís Figo, Deco e Cristiano Ronaldo. O controle da bola passa para Portugal, que esfria os ânimos dos adversários, ainda que isso não renda lá muitos gols — eles não conseguem formar centroavantes, apenas pontas. O mesmo pode ser dito sobre os espanhóis, mas o surgimento da dupla Xavi Hernádez e Iniesta passa a dispensar atacantes, principalmente depois da estreia de Messi no Barcelona.

Herdeiro do futebol total holandês, Pep Guardiola encantou o mundo com seu tiki-taka, uma evolução hipnotizante do controle de jogo, que levou a Espanha ao campeonato mundial inédito, ainda que a seleção nacional não consiga ser tão efetiva quando o Barça na marcação de gols. Esse reinado só seria quebrado pela verticalidade e simplicidade alemãs, por meio de contra-ataques mortais gestados em Bayern de Munique e Borussia Dortmund, que acabariam desembocando no desastre do 7×1, na Copa do Mundo de 2014.

Toda essa evolução culminou em uma “mistura”, concentrada no atual maior campeonato do mundo, a Premier League, conclui Cox. Os clubes ingleses foram comprados por estrangeiros e são treinados por estrangeiros, que comandam jogadores nascidos em outros países. Na perspectiva do autor, a seleção inglesa se prepara para assumir a dominação do futebol mundial. A não ser que ocorra uma mudança de regra, o nascimento de um novo gênio ou qualquer outra novidade imprevisível.

Na outra ponta dessa evolução está o Brasil, que não sabe nem que treinador escolher para sua seleção desde mais uma eliminação precoce na Copa do Mundo e cujos clubes não conseguem se entender nem para formar uma liga forte. Darwin escreveu que há grandeza nessa visão da vida, pela qual “de um começo tão simples, infinitas formas mais belas e maravilhosas foram e estão sendo evoluídas”. Triste é estar tão longe da linha evolutiva.

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  1. Duvido que o domínio do futebol mundial passe pela seleção inglesa. O campeonato inglês, por ser uma panela gigante com mistura enorme de jogadores e treinadores estrangeiros, com suas diferentes escolas, certamente gestará a próxima evolução do futebol e seguirá dominando o futebol europeu. Mas a seleção inglesa, por mais que tenha mudado bastante a sua forma de jogar e de formar jogadores, ainda carece muito de talento para vencer uma copa.

  2. Enquanto o futebol for dominado por dirigentes amadores e que cuidam apenas de interesses próprios, tanto nos clubes como na CBF, será como se diz " daqui pra frente só pra trás".

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