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“Sou um ET caído nesta Terra”

O fotógrafo, surfista e ativista Tito Rosemberg fala o que pensa sobre o lema "Deus, pátria, família e liberdade" dos manifestantes do 8 de janeiro e se confessa um deslocado neste mundo
03.02.23

Jornalista, fotógrafo, surfista e ativista, Tito Rosemberg conheceu 106 países, em cinco continentes, e fundou diversas ONGs de defesa do meio ambiente. Entre elas, o Núcleo Ecológico de Pipa, na praia onde mora, no Rio Grande do Norte. Já foi lavador de pratos, carpinteiro, velejador, fez campanha para deputado federal e passou dois anos vivendo em uma canoa de seis metros no Rio Negro, na Amazônia.

Aos 76 anos, Tito se declara um curioso incansável, que está sempre em busca de uma sociedade ideal, a qual nunca encontra. “Sou um ET caído nesta Terra. Não encontrei a minha sociedade. Nesses países em que estive, não me senti à vontade. Sempre penso que sou alguém vindo de outro lugar, um estrangeiro em uma terra estranha”, diz. A partir de suas andanças, ele escreveu um livro sobre o Camel Trophy, um antigo campeonato de jipes 4X4. Também publicou um com fotos do surf no Brasil, o Arpoador Surf Club.

Ao visitar Natal para uma consulta médica, Tito aproveitou a rede de celular para falar com Crusoé. Ele contou como se sentiu ao ver os Atos de 8 de janeiro e o que pensa do lema “Deus, pátria, família e liberdade”, entoado pelos manifestantes. Segue a conversa.

 

Como o sr. reagiu ao assistir aos ataques às sedes dos Três Poderes?
Fiquei hipnotizado. Aquelas pessoas estranhas pareciam ter saído de um submundo bizarro, como zumbis, para fazer a depredação. Não sou muito ligado nas coisas da arquitetura de Brasília. Mesmo assim, essa violência gratuita me chocou muito. Não tinha sentido algum. Fiquei abobalhado, boquiaberto, pensando em quais seriam as demandas possíveis daquelas pessoas para fazerem aquelas coisas…

Os manifestantes diziam que lutavam por liberdade.
Eu sou um anarquista. Lutei e luto muito por liberdade. Gostaria muito que não fosse necessário ter polícia. Sou a favor da desmilitarização da Polícia Militar. Sou a favor de mais liberdade. Passei 25 anos fora do Brasil. Quando eu saí daqui, em 1969, aos 22 anos, fui para a Inglaterra, em Londres. Foi lá que eu descobri o que era a liberdade, o respeito ao cidadão, a cidadania. A polícia naquele tempo não usava armas. Eu me apaixonei por Londres.

Por que o sr. deixou o Brasil?
Em 1968, decretaram o Ato Institucional número 5, o AI-5. Aí eu fiquei com vergonha do Brasil. Fiquei muito chocado. Fecharam-se todas as portas. O mundo tinha acabado, e eu fiquei com medo, tremendo. Eu frequentava o Posto 9, em Ipanema, e pegava onda no Arpoador com outros surfistas. A gente já vinha sendo reprimido por causa dos horários para pegar onda. Além disso, eu era jornalista e fazia teatro. Trabalhava na revista Manchete e cobri o golpe de 64 nas ruas. Apesar de não ser subversivo, nem guerrilheiro, eu tinha de correr da polícia. Vi pessoas morrerem. Uma vez, jogaram uma escrivaninha de um apartamento na rua Rio Branco. O móvel caiu em cima de um caminhão aberto, que levava policiais militares. Vi a polícia sendo atacada. Havia brutalidade de ambas as partes. Quando veio o AI-5, decidi sair para outro país onde eu poderia ser um cidadão melhor. No Brasil, a única coisa que se poderia fazer é esconder-se debaixo da cama e esperar passar aquela época sinistra. A realidade atual é muito diferente. O Brasil de hoje é um país com muita liberdade.

Arquivo pessoalArquivo pessoalNo deserto do Marrocos: “deslocado”
Muitos dos que estavam em Brasília em 8 de janeiro têm como lema “Deus, pátria, família e liberdade”. Como o sr. vê Deus?
Deus é totalmente liberal, democrata e está disponível para qualquer pessoa que necessite.

O sr. acredita em Deus?
Sou ateu, mas acho lindo quem vai à igreja rezar. A religião, quando moderada, traz paz, equilíbrio. Religião vem de religare, que é ligar de novo. É impossível que Deus faça o mal. Ele não tem contraindicações. Uma pessoa que adora a Deus será um cidadão melhor, teoricamente. Mas aqueles radicais que falavam em Deus também queriam o porte de armas para todo mundo. Eu não entendo esse Deus que eles procuram. Eles também dizem que o atual governo é contra a família. Como assim? Todo mundo ali é casado, tem filho. Eles estão vendo inimigos que não existem, como Dom Quixote. Não há ninguém no Brasil de hoje querendo que a família acabe.

Quando falam em família, a preocupação dessas pessoas é com o crescimento da comunidade LGBTQIA+…
Se você não gosta de gay, não seja um. Não namore um. Não frequente a casa deles. Se não gosta de uma pessoa trans ou lésbica, não ande com elas. Eu fui educado com um respeito máximo às liberdades de cada um. A primeira vez que vi uma parada gay, em San Diego, nos anos 1970, eu chorei. Fiquei emotivo não porque eu quisesse ser gay, mas porque testemunhei a liberdade das pessoas comemorando alegremente as suas preferências sexuais. Que bonito era ver as pessoas poderem fazer isso. Elas estavam em cima dos carros de som, dançando e cantando. Na minha juventude, o gay, se saísse nas ruas, poderia ser espancado. Eu cresci vendo os gays da Galeria Alaska, em Copacabana, sendo perseguidos pelos policiais, pelos hipócritas, cínicos e caretas. Eu não sou gay, não tenho interesse em uma relação gay, mas tenho grandes amigos gays. Conheço um casal de amigos gays que estão juntos há 25 anos. Eu respeito essa união deles. Foi uma relação que deu certo. Eles também têm família, assim como os heterossexuais têm as suas. Há centenas de opções. Mesmo quem não gosta disso, precisa entender que não há problema se o seu vizinho for gay. Mas o que aquelas pessoas querem é um tipo de família exclusiva, que só pode ser de um jeito só. Meu vizinho pode ser gay, assim como também pode ser evangélico e qualquer outra coisa. Mas, se o meu vizinho evangélico não deixar que eu seja gay, aí ele estaria invadindo o meu direito.

Arquivo pessoalArquivo pessoalTito e a canoa que foi sua casa por dois anos, no Rio Negro
E sobre o patriotismo?
Sou patriota se o meu país estiver em guerra por uma causa justa. Mas, se o meu país entrar em guerra pela causa errada, aí eu não vou lutar. Se o Brasil quiser invadir o Paraguai ou a Venezuela, eu certamente não entraria na guerra. Não acredito no patriotismo. Sou um planetarista, um humanista. Sou como um astronauta. Lá de cima, eu não vejo fronteiras. Pelo contrário, quando consegui falar o meu quinto idioma, o italiano, fiquei muito feliz. Eu falo a língua das pessoas do país onde estou. Eu não obrigo os outros a falar inglês. Conheço 106 países. Esse era um objetivo que eu tinha na vida desde criança. Queria saber como as pessoas viviam na Índia, na Turquia, no Saara. Estive com os tuaregs e também com o inuítes do círculo polar. Sou um antropólogo fracassado. Se eu tivesse continuado a estudar, seria um antropólogo. Gosto de ver as outras formas que as pessoas escolheram para viver. Algumas escolheram caminhos completamente diferentes do meu, e acho isso incrível. Essa é a beleza da humanidade, essa diversidade toda. Quando as pessoas ficam defendendo muito a sua pátria, eu me pergunto do que estão falando. O vizinho também tem a pátria dele.

Como o sr. se define?
Eu sou um ET caído nesta Terra. Não encontrei a minha sociedade. Nesses países em que estive, não me senti à vontade. Sempre penso que sou alguém vindo de outro lugar, um estrangeiro em uma terra estranha. Eu me sinto totalmente deslocado, porque os meus anseios de paz, poesia, tranquilidade, amor, são impossíveis de se realizarem neste planeta. Então eu vivo em busca de uma Terra que não existe. Infelizmente. Cheguei aos 76 anos tentando encontrar a sociedade ideal. Não encontro no mundo o conforto para conviver com pessoas que são meus iguais. Isso acontece desde criança. Quando viajei, não conseguia ir em grupo. Quando eu andava de moto, não gostava de ir com vários motoqueiros. Eu me sinto realmente uma figura única e deslocada.

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  1. Gostei das ideias do entrevistado, embora nãos as adotaria. Mas gostei muito de um comentário que chamou de sertanojo essa pobreza que esse estilo musical. CHEGA A SER PATETICO.

  2. Este é o Brasil onde as únicas pessoas que levam esta bosta a sério são anarquistas e cá prá nós com total razão.

  3. Genial Tito, muitos de nós pensamos e nos sentimos assim, após muitos anos morando na Suíça chego de volta no pais de Bolsonaro, com gente completamente estapafúrdia, jovens escutando sertanojo da pior qualidade, gente me chamando de "comunista"porque não defendo e nem sequer compartilho ideias estupidas me sinto exatamente um ET como voce.

  4. Triste esse sentimento de não pertencer a lugar algum, não é liberdade, é um vagar sem rumo nem propósito. Muita sorte ao Tito para que ainda tenha tempo de encontrar um lugar seu aqui neste planeta.

  5. Estou no lugar errado, no tempo errado, também me sinto estranho nesse mundo… ainda mais com esses extremistas querendo que todos creiam na mesma coisa, são um bando de hipocritas.

  6. Linda matéria, engrandecedora, me sinto também deslocado nesta sociedade de maioria hipocrita, que valoriza cada vez mais o materialismo em detrimento do engrandecimento espiritual. Precisamos entender que a única forma de mudarmos o mundo para melhor é evoluindo espiritualmente de dentro para fora.

  7. Que homem interessantíssimo..me sinto assim também..gostaria muito de ler mais sobre suas impressões, viagens e sonhos..pensamentos..compartilho com você o desejo de paz e respeito às diferenças.

  8. Parabéns ao jornalista Duda. Com suas perguntas fiquei conhecendo melhor o anarquista solitário e antropólogo Tito Rosemberg.

  9. Somos ET's, caro entrevistado. Difícil entender o que se passa neste país, em outros países, essa coisa chamada pátria. As pessoas se esquecem que são mortais. Deveriam se lembrar todos os dias.

  10. Adorei ver todas as experiências que esse entrevistado já passou na vida. Queria ter feito, também. Mas, como ele se identifica, é um ET sim, pois sozinho entre intra-terrestres que não conseguiu aceitar e compreender os moradores desta Terra. Agora, sobre o slogan "Deus, Pátria, família e Liberdade" deixo minha visão. Para mim isto nada mais é do que a reedição da TFP (Tradição, Família e Propriedade). Muitos conheceram essa Ordem, Seita ou se lá como definir (falta espaço para caracterizar+)

  11. Ótima entrevista, parabéns. Compartilho da opinião do entrevistado. Também compreendo que os "manifestantes", "baderneiros", "vagabundos" ou qualquer rótulo que queiram dar ao exército de Brancaleone que invadiu os três poderes só ocorreu porque há uma revolta contida na sociedade com a cara-de-pau e desfaçatez de membros dos três poderes. As Instituições são fundamentais, mas foram tomadas (e indicadas) por pessoas literalmente desqualificadas para o cargo que ocupam.

  12. Acho que John Lennon seria um bom interlocutor do entrevistado. “Imagine there’s no countries… imagine all the people luving life in peace… “

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