DivulgaçãoOrquestra Sinfônica da Bahia: repertório popular

Breguices sinfônicas

Um compositor competente pode transformar a melodia da música Morango do Nordeste em uma sinfonia e lhe dar outra dimensão, sem perder apelo popular
03.02.23

Uma boa controvérsia às vezes traz à tona questões relevantes para o debate público, questões que vão muito além da circunstância específica que a motivou.

Foi o que aconteceu após a divulgação do concerto da Orquestra Sinfônica da Bahia dedicado ao gênero brega, com o título “Osbrega – o concerto do amor”. O título, aliás, tenta problematizar o termo ‘brega’: ele aparece riscado no cartaz oficial do evento.

A controvérsia nasceu do comentário bastante contundente do maestro Ricardo Castro, em que critica o repertório do concerto no Facebook. Diz ele: “Quando uma orquestra sinfônica estadual, depois de conquistar milhões inéditos para seu orçamento e poder contratar músicos excelentes, escolhe esse ‘título’ para promover um concerto, estamos certamente entrando em um círculo do inferno nunca Dantes visto neste país”.

Ricardo Castro é maestro, tem uma carreira internacional e dirige a orquestra Neojiba, projeto social que ensina música a jovens de periferia. Ele ilustrou o post com uma imagem das camadas do inferno de Dante.

Logo veio a resposta do diretor artístico do espetáculo, Carlos Prazeres, usando aquela velha cartada de desqualificar a crítica como elitista. Diz ele: “Pegar uma ‘elite’ que detém o poder do conhecimento e da cultura faz ela ficar para sempre como elite e o pobre, sempre pobre. A elite precisa se abaixar um pouco para conversar com os outros”. E acrescenta: “A Osba não pode ser um disco voador vienense pousado em terras baianas”.

A síntese dialética coube a Nelson Rubens Kunze, crítico de música clássica e editor da Revista Concerto. Apesar de reconhecer estar mais para a posição de Ricardo Castro, ele pontua que Prazeres incluiu nos últimos anos o repertório estabelecido da música de concerto na programação da Osba, e que a preocupação de popularizar a música, como a que ele demonstra, é bastante necessária e tem motivado ações das principais orquestras do mundo.

Primeiro de tudo, é preciso que se diga com clareza: a música clássica não é elitista — elitista é a música popular. Pode parecer um contrassenso, mas vamos aos fatos: Caetano Veloso cobra um cachê maior do que o mais renomado solista ou maestro brasileiro. O ingresso de um show de Chico Buarque custa mais do que o mais caro concerto no país. O Cultura Artística, por exemplo, que traz orquestras inteiras do exterior para apresentações no Brasil, produz concertos que estão entre os mais caros — podem custar 600 reais a inteira, mesmo assim é possível chegar uma hora antes e conseguir ingressos a vinte reais a inteira. Ingressos para orquestras sinfônicas no Brasil custam barato ou de graça — diferente de qualquer show de música popular.

É preciso levar em conta que a música popular é hegemônica no Brasil. Ela toca em todo lugar. Seja ao vivo ou em gravações. A exceção – exatamente por ser exceção – chama muita atenção. Nunca vou esquecer: certa vez eu estava na cidade de Gravatá, no interior de Pernambuco, com o maestro Rafael Garcia e a orquestra jovem que ele dirigia. Ele chegou para passar o som num palco no centro da cidade. De repente, foi juntando uma multidão para ouvir algo completamente estranho a todos que estavam ali: a música clássica. O contrário também pode acontecer: se você chegar em Salzburg e colocar um Maracatu para tocar certamente todos vão parar para ouvir.

Uma vez que os espaços culturais no Brasil são predominantemente ocupados pela música popular, o que se espera é que os espaços dedicados à música clássica toquem… música clássica. A questão é que a música clássica – e esse termo é mais exato e preferível, como ressaltou Leandro Oliveira no livro Falando de música – não é o conteúdo melódico, digamos assim, mas a forma final. Desde sempre compositores clássicos se utilizaram de melodias populares, inclusive no Brasil – vide Heitor Villa-Lobos ou Marlos Nobre.

Conversei sobre o tema com o compositor Eduardo Frigatti e ele ressaltou que “é possível usar a melodia da música Morango do Nordeste para fazer uma sinfonia, por exemplo”, e “se tal empreitada for feita por um compositor competente, essa melodia ganharia outra dimensão, sem perder apelo popular”.

Não foi o que aconteceu no “Concerto do amor”, do maestro Carlos Prazeres. Diz Frigatti: “Simplesmente transpor o acompanhamento musical de Morango do Nordeste, por exemplo, para uma execução orquestral não agrega nenhum valor artístico à mesma. Aliás, rebaixa as possibilidades expressivas da orquestra”. E mais: “Dá para fazer arranjos interessantes e com valor artístico de músicas populares. O que se viu, entretanto, foi: melodia no pedestal, reprodução dos elementos das gravações originais das canções, e pouca inovação na parte instrumental”.

Existe uma dificuldade crescente em atrair o público para apresentações presenciais. Isso não é exclusividade da música clássica, é um problema também do cinema, do teatro, e por aí vai. Em tempos pós-pandemia, em que as pessoas descobriram as possibilidades de viver em casa, e do crescente avanço tecnológico (streaming etc), a concorrência com os eventos presenciais é enorme. A solução para isso não está no discurso populista de tocar péssimos arranjos de música popular para atrair o público, a solução é simplesmente a excelência artística. Uma orquestra que toca bem, com um repertório bem selecionado, é insubstituível. E pode ser, sim, tocando o repertório consagrado da música clássica, e não será um disco voador vienense tocando na Bahia, mas a própria dinâmica da universalidade da música.

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista, escritor e fotógrafo brasileiro

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  1. O que torna uma música bela são o arranjo e a interpretação. Pegue-se “No Rancho Fundo” cantada por Ney Matogrosso e por Chitãozinho e Chororó: nem parece a mesma música!

  2. Não compreendo como alguém pode trocar assistir uma performance ao vivo, especialmente musical ou cinemática, por ficar com a bunda no sofá assistindo por streaming. Não tendo visto a apresentação da orquestra do Prazeres, concordo com a posição do Frigatti. Bons exemplos disso são os excelentes cruzamentos de bandas de rock/metal com orquestras, em que as últimas acrescentaram muito ao original, sem descaracterizar-se (nem descaracterizar as canções) e apresentando-se a um novo público.

    1. Exatamente. Deep Purple, The Who, Rick Wakeman, Electric Light Orchestra, Pink Floyd tb.

  3. tenho pena de ver músicos tão talentosos, virtuosos tendo que se moldar a uma música tão pobre. Já vi situações semelhantes cuja iniciativa era até louvável. Levar a arte para o o povo. Mas não adianta, se a musica é pobre de composição não tem quem enriqueça. É uma questão estética.

  4. Arranjos orquestrais sem imaginação de música popular só tornam a música popular chata prá caramba, então não vai agradar nem o público da música popular nem o público da música clássica. Um gênio como Bach juntou "Estou a tanto tempo longe de ti" com "repolho e nabo puseram-me a correr", o que convenhamos deve muito pior para a digestão do que o morango do Nordeste, e ficou antológico, é a última variação do monumento "Variações Goldberg". E irônico, pq. em seguida vem o retorno do tema inicial

    1. Concordo em gênero, número e grau. Essas narrativas desse pessoal que está voltando ao poder é tão lastimável quanto a inexistência da cultura no governo anterior. O Brasil regride a passos largos

  5. Perfeita a análise de que a música "popular" não seja popular também nos valores captados por meios públicos ou privados. Basta ver o quanto qualquer artista "popular" recebe de cachê das mais diversas prefeituras por aí. Fato é que, de certa forma, ou de forma completa, há no Brasil uma cultura que fornece às massas populares apenas aquilo que há de pior em qualquer segmento artístico, como se prejulgasse que o "pobre" não tivesse capacidade intelectual de consumir alta cultura.

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