OrlandoTosetto

Como saber se sou liberal ou conservador

13.01.23

Sou muito confuso quanto à minha posição política: nem sempre sei quando sou liberal, quando sou conservador. Às vezes acho que sou uma coisa e me pego defendendo outra. Sou muito confuso, repito, e distraído também: você pode me pegar vestindo uma camiseta liberalíssima achando que é um paletó muito do conservador, e vice-versa, só porque não reparei no corte, no talhe, no tecido. Daí eu inventei um jeito de saber quando sou liberal e quando sou conservador. É assim: sempre que eu penso “deixa os caras!”, acho que sou liberal; e sempre que eu penso “segura os caras aí, caramba!”, acho que sou conservador.

O amigo dirá que o método é, no mínimo, impreciso, porque tem vez que ser conservador é deixar os caras, e tem vez que ser liberal é segurar, é amarrar, é prender os caras para averiguação. Pode ser, amigo; não discuto nem disputo, e também não tento fazer do meu método uma panacéia ideológica universal. Foi só o jeito que eu achei para tentar saber onde piso. E, para mim, ele funciona.

Domingo passado (já faz tempo, né? Já não está todo o mundo falando de outra coisa?), por exemplo, fui conservador. Quando vi a malta, burrona e maluca como toda malta, invadindo os palácios feios do Niemeyer e quebrando janelas feias, arrancando portas feias, furando telas feias, roubando estatuetas feias, aliviando-se feiamente sobre mesas feias, pensei “segura os caras aí, caramba! Não deixa, não deixa!”.

Fui conservador e também, ora, ora, coerente, porque eu também queria que segurassem os caras quando via manifestações de esquerdistas quebrando e incendiando agências bancárias, carros de transmissão da televisão, estações de metrô, bancas de jornal. Aliás, esse modo esquerdista de agir é tão invariável e tão frequente que eu fiquei até com um tique nervoso: sempre que eu via camisas vermelhas reunidas, como, por exemplo, o time do Internacional, já ficava pensando “segura os caras, segura!”.

É verdade que, quando os esquerdistas fazem isso, ninguém os chama de terroristas, só de manifestantes; é verdade que, quando os esquerdistas fazem isso, ninguém os chama de golpistas, só de ativistas; é verdade que, quando os esquerdistas fazem isso, eles não são presos em lotes de mil para “averiguação”; e é verdade que, quando os esquerdistas fazem isso, só se ressalta o caráter pacífico da “manifestação”, quebra-quebra à parte.

É claro que eu não esperava ver a direita fazendo a mesma coisa, mas não importa: eu não gostava e não gosto, eu queria e quero segurar os caras, e por isso eu me tenho na conta de conservador. Tinham que ter segurado os caras. Mesmo que isso implique em conservar toda a feiúra dos palacetes, da mobília, dos quadros, das portas, das estatuetas, dos poderosos de Brasília. Paciência.

O amigo agora poderia dizer que o meu método, além de impreciso, é ingênuo, porque, no exemplo que dei, nunca me perguntei cui bono, quem ganhou ou continua ganhando com a burrice. Mas a isto respondo, amigo, que ingênuo não é o método: ingênuo sou eu.

* * *

Há a entrada célebre no diário de Kafka quando rebentou a Primeira Guerra Mundial: “2 de agosto de 1914: hoje a Alemanha declarou guerra à Rússia. De tarde fui nadar”. Dá para desculpar Kafka por sua, hum, alienação lembrando que, naquele tempo, declarações de guerra eram coisa mais ou menos cotidiana, especialmente as da Alemanha, e que é típico do homem são ir nadar em vez de prestar atenção ao noticiário.

Há também o nobre francês que, durante os dias do terror de 1789, só escreveu em seu diário notinhas sobre sua vida cotidiana e os jardins do seu palais. Sua desculpa? Bom, em 1789 as notícias andavam em lombo de burro, e talvez o palais ficasse longe de Paris, e quando ele soube de tudo, Carlota Corday já tinha agido.

Por outro lado, se dia 8 eu tivesse escrito no meu diário imaginário algo como “Invadiram uns palácios em Brasília e fizeram um tremendo quebra-quebra; comprei um chocottone bom de verdade”, qual seria a minha desculpa, eu que não sou escritor angustiado nem fidalgo, para fazer pouco dos fatos da hora? A gula?

Quiçá, quiçá. Se for a gula, fico na boa companhia de pelo menos um ministro. Do chocottone só digo que era bom mesmo. Ao menos isso foi bom.

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  1. Orlando Tosetto, adorei o método. Vou adotar daqui para frente. Quem dera se os outros jornalistas e cronistas pudessem ser simples e isentos como você. Não teríamos tantos discursos de pessoas agredindo-se mutuamente. Parabéns.

  2. Você não é ingênuo. Você é mal intencionado mesmo. À esquerda sair quebrando é crime sim. Mas não é terrorista nem golpista porque não pede para os militares tomarem o poder.

    1. Sim, por isso falamos hoje falamos “tortura nunca mais”.

  3. Destruição de esquerda é manifestação, Quebra-quebra de direita é terrorismo...nossa isenta mídia. Aproveitando, não sei se no texto existe ironia ou não, mas não vejo beleza alguma nas obras de Niemeyer em Brasília. Não conto isso para ninguém...rss

  4. Texto cirúrgico pela precisão. Especialmente quando compara as interpretações, hoje diz-se leituras, dos fatos feitos pelos nossos em confronte dos fatos feitos pelos deles. Apenas uma questão de lado. Dá até para confundir stalinistas com nazistas.

  5. Vou tentar usar seu método para ver se tiro as mesmas dúvidas quanto a mim. Agora, concordo com a feiúra dos palácios(alguns escapam) notadamente a coberta deles. Que coisa pavorosa aqueles tetos aparecendo na tv. Os esquerdistas elegeram Niemayer como gênio porque se dizia comunista embora só projetasse coisa de rico. Nunca uma casa popular, que eu saiba. Mas se ele era gênio com aquele cimentado, qual o adjetivo para Brunelleschi, autor do Duomo de Florença há 500 e tantos anos?

  6. Jamais imaginei ver horda de "direita" agindo de forma tão similar a de "esquerda". Entendi que nada tem a ver ser vermelho ou verde-amarelo. Os objetivos são diferentes, mas a forma de se expressar pode ser igualzinha a qualquer animal quando se sente ameaçado. A única diferença, no final da contas, está entre ser inteligente ou não.

  7. Texto bem escrito e com ironia fina . Em um país de semi-analfabetos é gratificante ler quem escreve bem .

  8. Pelo que entendi, empate! Neste país, pelo que percebo, a engenuidade está presente tanto na burrice quanto na inteligência. E isto acontece porque , neste país não se consegue nem identificar quando se trata de burrice ou de inteligência. Espera-se ardentemente, que a engenuidade termine. Agora, o que virá depois, ninguém sabe. Após o empate e a engenuidade reinante ( assim acham os mais inteligentes ) , temos que conseguir identificar o novo que conseguiu atracar na ...

    1. Ingenuidade. Quando vi a primeira vez, pensei ser um erro de digitação, mas como continuou em mais duas citações, resolvi pedir para que corrigisse.

  9. Talvez não prendam em lotes de mil quando são manifestantes de esquerda. Mas a comparação não é honesta - os presos em menor número comem o pão que o diabo amassou. Basta ver como a polícia paulista tratou professores e a do DF tratou os “patriotas” (sic).

    1. Gostei do artigo, ao menos um se salvou. o jornalista deve ser imparcial e independente, mas nesse cenário atual, de extrema polarização, até a mídia é contaminada. Excessos, vandalismo e violência devem ser condenados e reprovados de ambos os lados, seja de esquerda, seja de direita. Muito se condena o bolsonarismo, mas são omissos e lenientes com o lulopetismo que tolera atos de vandalismo e de violência dos esquerdistas.

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