OrlandoTosetto

Política de barbearia

02.12.22

Houve tempos mais risonhos na minha vida, em que tudo o que eu sabia de política era o que ouvia de taxistas e barbeiros. Mais de barbeiros do que de taxistas, haja vista a diferença nas tarifas. Fora do âmbito desses, hum, serviços, a vida corria sem que ninguém soubesse bem quem presidia a Câmara, quem mandava em tal ou qual tribunal, quem eram os senadores do seu estado: mal e mal se sabia o nome do prefeito, e a palavra “vereador” era quase mote de piada suja.

Mas isso foi em tempos quase imemoriais: os anos 80/90. Hoje não é mais assim. Que saudades dos anos d’outrora, em que eu entrava no salão do meu barbeiro, um cearense baixinho, amigo do violão e da cachacinha de ocasião, e via o Notícias Populares dobrado em cima de uma mesinha. Eu me sentava na cadeira, vestia aquele avental que cheira eternamente a água de colônia vagabunda, respondia às perguntas de praxe (“Bem curto atrás? E em cima? Passa a máquina? Vai fazer a barba?”) e esperava o primeiro comentário.

— Viu o Brizola?

— Não vi o Brizola. O que é que ele fez?

— Rapaz…

Sempre que surgia esse “rapaz”, era bomba: o Brizola tinha aprontado. Ou o Maluf. Ou o Enéas. Ou o Ibsen. Ou o “doutor Ulysses”. Ou o Jarbas Passarinho. Ou qualquer outro. O barbeiro ia cortando meu cabelo com pente e tesourinha dentada e desfiando a iniquidade da hora. E aí vinha:

— É por isso que eu defendo sabe o quê?

Eu sabia, mas fazia de conta que não.

— O quê?

— A guilotína.

Guilotína, e não guilhotina: ele engolia o “h”. E continuava:

— Bota a guilotína aí que resolve essas patifarias.

— Mas, rapaz, o Brasil nunca teve guilhotina – dizia eu sempre.

Nessa hora ele geralmente estava trocando a lâmina da navalha. Trocava e dizia:

— E é por isso que a coisa tá como tá.

E, enquanto me ensaboava a cara, concluía:

— Eu roçava aqueles pescoço tudo.

Se eu tinha medo que ele roçasse o meu pescoço, fosse por engano, fosse por entusiasmo? Tinha, mas não muito. Eu era freguês fiel. E meu nome não saía no jornal. Em todo caso, melhor saber da política assim, só de vez em quando e bem perto do fio da navalha: a gente tende a levar a coisa mais a sério.

* * *

Tem-se falado muito numa PEC da gastança. Se “gastança” todos sabemos bem o que seja, embora nem todos possamos praticar, “PEC” já é uma desses negócios do jargão político cujo aprendizado os tempos nos impõem. Para começo de conversa, eu nem sei como é que se diz PEC: se é pê-ê-cê ou péqui (acho que é péqui). Mas aprendi que é uma Proposta de Emenda Constitucional. Essa da gastança, pelo que entendi, propõe emendar a Constituição para permitir ao novo governo velho gastar mais do que já gastava quando era só governo velho. E vi ainda que, se aprovada – eu disse “se”? Bom dia, meu nome é Poliana –, será a centésima vigésima sexta emenda ao texto quase perfeito de 1988.

Bem, não há perfeição que não possa ser corrigida cento e vinte e cinco (ou seis) vezes. Especialmente se a correção for feita para ajudar quem gosta de gastar a… gastar muito mais. Quando vejo essas coisas, lamento muito ser mera pessoa física e não, sei lá, pessoa constitucional: como pessoa física, fico fora da abrangência de péquis (ou pê-ê-cês) tão generosas. E eu bem gostaria que o Congresso me autorizasse a gastar aí uns tantos mil reais numa viagenzinha à Europa. Ou ao Catar. Mas aposto que se eu for à Casa Legislativa passar o chapéu da minha péquizinha, vão mandar eu me qatar.

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  1. Ontem, em Copacabana, após o jogo, bares cheios. O bar " Cervantes" , reinaugurado , faz parte de momentos como " black blocs " e, agora, está à espera do " Homem de La Mancha ". Será que chegará cavalgando, ou... em uma carruagem, ou... em um foguete, ou...atualizando ... Virtualmente.

  2. Pensando bem, a “guilhotina” do barbeiro cearense, leitor de Notícias Populares, é o que merecem muitos dos atuais políticos e se pode incluir aqui técnicos de futebol como o Tite que ganha 20 milhões de reais por ano, do nosso dinheiro, para perder da seleção de Camarões e, nos comentários que faz, nos dar aula de filosofia barata.

  3. Excelentes comentários. Não bastasse ser a 126º emenda à Constituição, ainda pode ser aprovada em menos de um mês. Como a nossa Carta Magna é frágil e flutua ao sabor dos ventos da conveniência. Lamentável!!

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