Migrantes venezuelanos em Lauro de Freitas, BahiaVenezuelanos são recebidos em Lauro de Freitas, na Bahia

O Brasil que acolhe

Migrantes e refugiados venezuelanos foram incluídos no SUS e transportados para 838 cidades, onde ganharam uma vida digna. Qual será o futuro desse programa?
30.09.22

Brasil e Venezuela nunca estiveram tão próximos como nos últimos cinco anos. Isso não tem que ver com a assinatura de novos acordos comerciais, investimentos ou aumento das exportações — elementos que costumam balizar as relações entre os países. É a chegada de milhares de cidadãos provenientes de todas as cidades e povoados da Venezuela para os 27 estados do Brasil, através da fronteira de Pacaraima, em Roraima, que marca essa nova etapa nas relações binacionais.

Desde que começou uma crise humanitária complexa na Venezuela, 6,8 milhões de pessoas cruzaram as fronteiras. Por meio da Operação Acolhida, o Brasil tornou-se o quinto país que mais recebeu migrantes. Esse programa federal, criado em 2018, é coordenado pela Casa Civil e sua execução depende das Forças Armadas. Os militares, em conjunto com agências internacionais, como a Organização Internacional das Migrações, OIM, e o Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, Acnur, merecem um reconhecimento mundial pelas suas ações.

As histórias de cada refugiado e migrante venezuelano, coletadas por militares, voluntários e funcionários das agências, dão conta da magnitude dos danos: desnutrição de crianças e adultos; famílias destruídas e desarticuladas pela perseguição política; menores sem pai ou mãe porque eles morreram de fome. Crianças menores de idade que fugiram das minas da região do Arco Mineiro, depois de serem forçadas à prostituição, aproximam-se grávidas da fronteira. Cidadãos são condenados à morte por falta de tratamento médico. Homens, mulheres e crianças carregam tudo o que podem em um percurso a pé até o Brasil em busca do básico: comida, água para tomar banho com dignidade, luz e saúde. E também de liberdade. Na Venezuela, os cidadãos não têm liberdade para nada, seja para pensar, escolher seus representantes ou sonhar com um futuro para os filhos.

Pela fronteira entre a Venezuela e o Brasil já passaram mais de 700 mil venezuelanos. Muitos seguem para outros países mas, segundo estatísticas oficiais, hoje vivem aqui 358 mil. Eles receberam um Registro Nacional Migratório ou Protocolo de Refugio. Foram inscritos no Sistema Único de Saúde, o SUS. Portam CPF e têm direito ao trabalho. Os venezuelanos foram recebidos de braços abertos e também com dignidade, respeito e afeto. Além disso, durante a pandemia, ganharam o auxilio emergencial de 600 reais, que foi aprovado pelo governo federal. Também foram vacinados contra a Covid sem qualquer tipo de discriminação, assim como qualquer cidadão brasileiro, o que não ocorreu em outros países onde existem diferenças entre nacionais e estrangeiros.

A Operação Acolhida, com a ajuda do setor privado e das agências internacionais, transportou 80 mil venezuelanos do estado de Roraima para 838 municípios brasileiros. Eles então puderam reencontrar familiares, amigos e começar uma vida nova. É um processo coordenado, no qual os migrantes e os refugiados venezuelanos recebem aulas sobre o país e sobre a cidade e o estado onde vão viver. Se for o caso, eles também aprendem sobre a empresa em que vão trabalhar. O tratamento que se dá aos migrantes e refugiados no Brasil não se compara ao de outros países. Por ser a crise migratória venezuelana a maior da atualidade em um país que não sofreu um desastre natural ou uma guerra, a Operação Acolhida é reconhecida mundialmente pelo seu desempenho.

Neste cenário, as estatísticas oficiais estimam que, nos últimos três meses, 25 mil venezuelanos entraram no Brasil, contrariando o que apregoa a narrativa oficialista do regime de Nicolás Maduro, de que a “Venezuela se consertou”. Nesta mesma semana, o embaixador de Maduro na ONU afirmou que 60% dos migrantes voltaram ao país, que a migração não existe e que foram inventados milhares de migrantes “fantasmas”. Isso é um desrespeito à realidade e ao trabalho das agências internacionais.

Uma média de 1.800 venezuelanos abandona o seu país por dia. Eles fazem isso pela fronteira com a Colômbia — onde hoje vivem 1,8 milhão — pelo Brasil e por pequenas embarcações no mar do Caribe. A outra cara atroz da migração é a perigosa selva de Darién, no Panamá. Cerca de 85% dos migrantes que a atravessam são venezuelanos e o aumento do fluxo foi de 70% entre 2021 e 2022. Na semana passada, uma menina morreu afogada e um menino foi assassinado por um disparo, só para citar os casos mais recentes.

Depois de atravessar o continente nessas condições e sobreviver à fome e as máfias, os nossos migrantes chegam exaustos ao seu principal destino: os Estados Unidos. De lá, com um claro e lamentável propósito político em época de campanha eleitoral, têm sido enviados de ônibus ou avião pelo governador do Texas até Nova York, Washington ou mesmo para a exclusiva ilha Martha’s Vineyard, para pressionar políticos do Partido Democrata. Este é mais um sinal da dimensão da nossa crise, e nada nos faz pensar que a curto ou médio prazo o fluxo migratório vai parar. As causas que o originam ainda estão presentes: Maduro, seu regime e suas políticas.

Em poucos dias haverá um processo eleitoral no Brasil para escolher o presidente da República, congressistas e governadores. No entanto, a situação de nossos venezuelanos e seu futuro nos obriga a fazer um questionamento. Ao olhar os programas e planos de governo apresentados por aqueles que aspiram a liderar a nação, não encontramos nenhuma proposta ou comentário sobre algo fundamental que nos preocupa.

O Brasil é um país grande, formado por imigrantes, e nossos venezuelanos agora são parte dele. Cada dia chegarão mais, porque há milhares de famílias que criaram raízes e estão trazendo parentes, assim como ocorreu historicamente com outras ondas migratórias. Ter planos e programas claros é uma garantia de uma migração legal, segura e de uma integração que contribua para o crescimento do país.

O Brasil é hoje um membro não permanente do Conselho de Segurança e integra o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, a ONU. Seu compromisso com a liberdade, com a defesa e a dignidade dos migrantes tem sido o norte que guia suas ações, sendo o único país que aplica a convenção de Cartagena, reconhecendo a condição de refugiados aos venezuelanos. Um legado que enche de orgulho as mulheres e homens do Comitê Nacional para os Refugiados, Conare, e da Operação Acolhida, aos quais jamais teremos como agradecer.

Por isso, com preocupação genuína e respeito frente ao futuro próximo, eu pergunto: qual será o destino da Operação Acolhida? O que acontecerá com o programa de atenção aos migrantes e refugiados venezuelanos no Brasil?

 

María Teresa Belandria é embaixadora da Venezuela no Brasil

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