AlexandreSoares Silva

Os caolhos blasfemadores

19.08.22

Nunca quis matar um escritor. Nem machucar, apunhalar no olho etc. É estranho isso? Estou deixando de participar de um sentimento universal?

No máximo quis dizer, e disse, umas palavras depreciativas sobre um ou outro. Zombar, zombei, sim, certamente, certamente. Mas sempre reservei as fantasias de assassinato para as pessoas que realmente merecem, como as que ouvem música alto na praia ou gente que fala berrando no celular em lugares públicos. Todas as minhas fantasias de assassinato envolvem barulho.

Pensando bem é possível que, aos 13 anos, quando me forçaram na escola a ler Capitães de Areia, do Jorge Amado, e Gota D’Água, do Chico Buarque (no mesmo ano letivo!), eu tenha fantasiado durante todo o tempo de leitura que treinava chutes de muay thai nos corpos desses dois escritores. Também é possível que na fantasia eles estivessem pendurados no teto por cordas, e que suas então mulheres, as assim chamadas Zélia e Marieta, chorassem muito e me implorassem que parasse. E gosto de pensar que eles sentiram algumas dores naqueles dias, por causa desses ataques no plano astral feitos com grande poder psíquico por uma reles criança em São Paulo.

Mas fantasiar com assassinato de autores acho um pouco de histeria demais, quanto mais sair por aí tentando praticá-lo. Chega a ser ridículo. Sim, olhe-se no espelho um momento, terrorista islâmico. É ridículo você assim brandindo uma faca, como um sous-chef ofendido por causa do ponto de uma pappardelle ai vongoli.

Também sou contra blasfêmias, imagino. O que ateus raramente entendem é que zombar da religião dos outros é como fazer um filme ou um livro mostrando a sua mãe, com o nome da sua mãe, R.G. da sua mãe e tal, fumando crack, se prostituindo etc. Se você ficar furioso com isso as pessoas de fora podem até dizer que você tem uma hipersensilidade patética, mas espere só quando aparecer a mãe deles na tela se drogando, indo para a cama com um homem de pochete, colocando gelo no vinho ou fazendo coisas igualmente degradantes.

Tendo dito isso, me parece que a blasfêmia pode ser errada, desagradável, o que seja, mas quando começam a surgir leis antiblasfêmia, ou quando existe uma pressão social por parte de determinado grupo (piscadela seguida de cotovelada nas costelas do leitor) de que se você blasfemar vai ser apedrejado, esfaqueado, vai ter a sua casa de praia incendiada, vai ser explodido por uma bomba, vão passar com um caminhão por cima de você, ou você vai ser decapitado com uma cimitarra em uma rua no meio de Paris, nesse caso começo a ficar a favor da blasfêmia, sim. Começo a achar até que talvez exista um dever moral de blasfemar um pouco quando existem leis antiblasfêmia e violência antiblasfêmia.

Alguns anos atrás, quando houve o ataque ao jornal Charlie Hebdo, até eu desenhei umas charges com o Maomé. Ficaram horríveis e eu tive que escrever “Maomé” embaixo pra que as pessoas não achassem que era um faquir, ou a Carmem Miranda, ou a Erika Badu, ou o astrólogo Walter Mercado, ou qualquer outra pessoa que usava um turbante. Mas o fato é que eu senti que era preciso reagir um pouco a esse clima contra blasfêmia. “Blasfememos, pois”, pensei depois de um suspiro e peguei o meu lápis para desenhar aquele profeta indesenhável em situações ridículas.

Em resposta ao ataque ao Salman Rushdie (cujo maior feito, para mim, foi ter casado com a modelo Padma Lakshmi), o perfil oficial de Emmanuel Macron no Twitter publicou isto na semana passada:

“Por 33 anos, Salman Rushdie encarnou a liberdade e a luta contra o obscurantismo. Ele acaba de ser vítima de um ataque covarde das forças do ódio e da barbárie. Sua luta é a nossa luta, é universal. Agora mais do que nunca, estamos ao seu lado.”

Ótimo que esteja do lado de Rushdie, Macron, ao qual é um pouco ridículo eu me dirigir diretamente como se ele assinasse a Crusoé, mas “forças do ódio e da barbárie”? Qual a dificuldade de mencionar por nome aquele grupo que eu não vou mencionar por nome? Até quando essa covardia, Macron, de mencionar por nome aquele grupo lá?

Enfim, ao que parece, Rushdie vai perder um olho. Como Camões, aliás, fazendo de Camões e Rushdie a grande dupla de caolhos blasfemadores contra Maomé. Por curiosidade, eis algumas das muitas menções a Maomé n’Os Lusíadas:
“... quanto excede
A lei de Cristo à lei de Mafamede“.
… o Profeta falso e noto,
Que do filho da escrava Agar procede…
…a malina
Gente que segue o torpe Mahamede…”,

E por aí vai. Raramente Camões mencionava Maomé sem resistir a colocar um “torpe” do lado. Perdeu o olho numa batalha naval, mas se tivesse nascido uns 400 anos depois certamente teria recebido uma fatwa nas fuças e estaria agora recebendo as condolências de Macron e J.K.Rowling no Twitter.

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  1. O motivo pelo qual Macron não chama pelo nome "aquele grupo lá" é que ele sabe que a Europa toda (e mais ainda a França) está prestes a ser demograficamente tomada pelo pessoal de cujo seio saem os militantes "daquele grupo lá". E como resolver isso tudo sem correr o risco de adentrar no racismo ou na xenofobia???

  2. Todas as minhas fantasias de assassinato envolvem políticos. E não estou nem aí se perder um olho: em terra de cego, quem tem um olho é rei, já dizia vovó.

    1. Também gostaria que determinados políticos “sumissem” do nosso país forever…

  3. O pior de tudo é q o cidadão q esfaqueou Rushdie leu somente as duas primeiras páginas de Os Versos Satanicos. Imagino q não tenha entendido nada e parou com a leitura.

  4. Excelente! Parabéns! E sobre fantasias de assassinato e barulho (misofonia), embora seja uma associação inspiradora para escrever e assim descarregar o desconforto, sugiro dar uma olhada em misophonia.duke.edu abraço.

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