Karen Fontes/iShoot/FolhapressNo lixo, à procura de comida: se a comida de qualidade está com a democracia, a porcariada está com a ditadura?

A praga dos privilégios

A cultura brasileira deu origem ao flagelo da economia de privilégios, que privatiza o Estado para servir a interesses individuais
08.07.22

Stefan Zweig, escritor austríaco que morou em Petrópolis e lá morreu, escreveu em 1941 um livro com o célebre título Brasil, País do Futuro. Em O Flagelo da Economia de Privilégios: Brasil, 1947-2020, procuro entender por que Zweig errou na sua previsão e o futuro do nosso país nunca chega. Nos últimos vinte anos, dediquei-me com afinco a esse enigma, não somente estudando a literatura que trata das causas dos fracassos e dos sucessos das nações, mas também viajando pelos quatro cantos do mundo, para entender melhor o meu país. Este artigo apresenta uma visão panorâmica da solução que proponho.

O Flagelo da Economia de Privilégios analisa o fenômeno recorrente de crescimento econômico, crise fiscal e estagnação observado na economia brasileira no período 1947-2020. O crescimento foi interrompido por crises fiscais que produziram estagnação em três ocasiões: 1) no início da década de 1960; 2) no início da década de 1980 e 3) na metade da segunda década deste século — sendo que hoje, em julho de 2022, não é possível fazer uma previsão sobre o término desse último apuro. Como explicar a ocorrência dessas crises, num país que não teve guerras, internas ou externas, nem tampouco fenômenos naturais que o devastassem?

Uma resposta para essa pergunta seria atribuir essas crises aos governos que comandaram o país nos momentos em que elas ocorreram. Portanto, as crises fiscais seriam geradas por governantes irresponsáveis. O Flagelo não segue esse caminho. As instituições, formais e informais, isto é, as regras do jogo numa sociedade, dependem da cultura, entendida como os valores, preferências e crenças de um povo. A causa fundamental das crises ficais é a cultura brasileira que deu origem à economia de privilégios. Para os agentes da economia de privilégios, o Estado não é uma instituição que tem o bem comum como objetivo. O Estado, na economia de privilégios, é privatizado para servir a interesses individuais.

O privilégio é definido pela apropriação de recursos públicos para fins privados, por meios legais, sem que haja contrapartida de bens e serviços que justifique o valor extraído. A economia de privilégios é formada por diferentes grupos de interesse que, na prática, vivem como rentistas do Estado. Nesses grupos existem i) empresários obtendo subsídios, transferências e tratamento fiscal diferenciado; ii) trabalhadores com tratamentos especiais, inclusive de impostos; iii) funcionários públicos dos três poderes com salários abusivos quando comparados com os do setor privado e até iv) anistiados políticos com aposentadorias e pensões especiais.

Na economia de privilégios vale quase tudo para apropriar-se de recursos públicos. A hipocrisia é dominante, pois o discurso (social) não corresponde à prática (privada). Os agentes da economia de privilégios são oportunistas, sem nenhuma preocupação ética ou moral.

Os países que deram certo da Europa Ocidental, os países escandinavos, Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia, Austrália, Japão, Coreia do Sul, Singapura, Taiwan e Hong Kong são economias sociais de mercado. Nesse sistema, o estado cuida da justiça social e o mercado trata de eficiência econômica. O mercado e o Estado não são instituições antagônicas, mas complementares. As regras são universais e os privilégios praticamente inexistem.

Este sistema econômico não nasceu da noite para o dia, mas surgiu de crises enfrentadas pelas economias de mercado na primeira metade do século passado. Houve uma expansão do tamanho do estado, que atualmente varia entre 30% e 50% do produto interno bruto. A carga tributária transformou-se em progressiva — quem ganha mais paga relativamente mais impostos e os serviços públicos, como educação básica, saúde pública, auxílio-desemprego e previdência social, são quase sempre universais. O sucesso desse sistema em termos de bem-estar social tornou-o um paradigma copiado pelo resto do mundo.

Os agentes que apoiam a economia social de mercado são denominados neoprogressistas. No Brasil, a palavra progressista é usada para denominar políticos de esquerda de inspiração marxista, que na verdade deveriam ser conhecidos como obscurantistas, depois do fracasso do modelo soviético de uma economia dirigida pelo estado. Daí o prefixo “neo” para distinguir os dois grupos.

Em qualquer análise de desempenho econômico, há necessidade de um referencial para a comparação fazer sentido. Existem dois tipos de estagnação. A estagnação absoluta toma como referencial o próprio país. Se ele anda para trás, como aconteceu com a Venezuela recentemente, a estagnação é absoluta. A estagnação relativa depende do país que se tome como referência. O Flagelo usa como referencial a economia social de mercado, aqui representada pelos Estados Unidos.

O populismo sempre foi uma praga no Brasil e na América Latina. No final do século passado houve uma transformação da praga, aqui no Brasil, com o surgimento de uma nova cepa, o vírus neopopulista. Essa nova cepa é formada por aqueles que se inspiram na teoria marxista e têm como projeto permanecer no poder por tempo indefinido. A história mostra que a permanência no poder por tempo indefinido produz corrupção e um estado totalitário com a supressão das liberdades fundamentais. Mas, afinal de contas, qual a principal característica econômica do populismo, seja ele antigo ou novo? O governo populista acredita que pode viver sem levar em conta as restrições orçamentárias.

O governo financia suas despesas cobrando impostos, emitindo dívida pública ou emitindo moeda. O populista prefere aumentar os gastos financiando-os com emissão de dívida e/ou moeda. O uso continuado desses instrumentos produz crise da dívida pública, ou inflação crônica e hiperinflação.

Numa economia aberta, um país pode viver acima de suas posses, temporariamente, financiando as despesas com empréstimos no exterior e aumentando a dívida externa. O uso continuado desse instrumento leva a crise da dívida externa.

A experiência histórica mostra que nenhum país ficou rico sem disciplina macroeconômica. As crises (fiscal, monetária, da dívida pública e da dívida externa) revelam uma sociedade que não construiu instituições que produzam crescimento econômico sustentável e justiça social permanente.

Um grande número de partidos participa do jogo político brasileiro. A maioria, sem nenhuma ideologia ou programa que o diferencie dos demais. Muitos funcionam como balcão de negócios que transaciona apoio político em troca de privilégios. O Flagelo divide a sociedade brasileira em três grupos que disputam o controle do poder político: neoprogressitas, neopopulistas e oportunistas. Nesse jogo político, dificilmente um grupo pode governar sem o apoio de outro, porque não consegue sozinho o controle do Congresso Nacional. Existem várias possibilidades. A coabitação de neoprogressistas com populistas é pouco provável, em virtude de diferenças ideológicas. Os oportunistas, por outro lado, podem se aliar tanto aos neoprogressistas como aos neopopulistas. Em qualquer situação, eles causam o fenômeno do flagelo, que consiste numa crise fiscal que leva à estagnação absoluta ou relativa da economia.

As crises fiscais brasileiras são produzidas pela criação de privilégios que aumentam as despesas do governo, de tal sorte que a principal tarefa do responsável pelas finanças públicas é administrar o pagamento da folha de salários. O investimento público em infraestrutura praticamente desaparece, pois ele não cobre sequer a depreciação das instalações e dos equipamentos. Os contribuintes, diante dos privilégios, não aceitam financiá-los com aumento de impostos. O resultado desse conflito é o déficit público. Como resolvê-lo? Alguém tem de pagar a conta, pois não existe almoço grátis. Uma alternativa é emitir moeda como o Brasil fez até o Plano Real, transferindo o ônus para as classes pobres que pagam o imposto inflacionário. Os ricos sempre podem evitar o imposto inflacionário usando serviços financeiros que os protegem da inflação. A outra opção para financiar o déficit é emitir dívida pública, transferindo a conta para as gerações futuras. O governo usa, então, a poupança privada para financiar o déficit público, o investimento privado diminui, os recursos do investimento público são usados para pagar parte dos privilégios e a taxa de investimento do país cai, gerando estagnação. Nesse ambiente de crise fiscal e estagnação, a incerteza domina qualquer decisão econômica. A melhor opção é não fazer nada até que a sociedade realize a consolidação fiscal exigida pela crise.

A cultura de um povo não muda da noite para o dia, pois sua dinâmica tem um componente inercial bastante elevado. No curto prazo não há instrumentos para mudar aspectos da cultura que produzem comportamentos antissociais, como é o caso da economia de privilégios. Resta, portanto, usar antídotos, que procurem impedir o flagelo.

O primeiro antídoto é impedir a crise fiscal, adotando uma regra crível de superávit primário que o governo seja obrigado a cumprir. O teto dos gastos, aprovado no Governo Temer, procurou resolver o problema do aumento sistemático de gastos reais do governo. Todavia, o teto dos gastos não é condição necessária nem suficiente para a sustentabilidade da dívida pública. A evidência empírica mostra que ele não foi capaz de resolver a crise fiscal. Pode-se argumentar que uma crise mais profunda foi evitada. Mas a um custo enorme, quando se pensa em tudo que o país deixou de produzir. Uma doença grave como uma crise fiscal deve ser debelada com um tratamento de choque e não com o tratamento gradual que a implementação do teto oferece.

O segundo antídoto é a criação de mecanismos que impeçam a economia de privilégios de apropriar-se de recursos destinados ao investimento em infraestrutura. Esse mecanismo poderia ser a vinculação de receitas tributárias a um fundo de investimento em infraestrutura.

Para solucionar a atual crise fiscal, o Brasil tem que fazer uma escolha crucial. Caso queira ser um país sem futuro, basta continuar fazendo o mesmo de sempre. Caso contrário, tem de atacar o flagelo da economia de privilégios.

Fernando de Holanda Barbosa é professor da Escola Brasileira de Economia e Finanças (FGV). É doutor em economia pela Universidade de Chicago. Foi Secretário de Política Econômica do Governo Itamar Franco.

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