Adriano Machado/Crusoé

No reino das isenções

As renúncias fiscais em favor de setores historicamente agraciados por Brasília continuam comprometendo as contas públicas. E o pior: elas estão em viés de alta, apesar do discurso de Paulo Guedes
14.08.20

A inércia do governo na condução das privatizações e a hesitação do presidente Jair Bolsonaro com a reforma administrativa levaram a uma “debandada” no Ministério da Economia e geraram um clima de desconfiança no mercado. A pressão do Centrão para que o Planalto flexibilize o teto de gastos e abra as torneiras de dinheiro público para a gastança eleitoreira desenfreada ajudou a consolidar o clima de incerteza, já alimentado pela crise da pandemia. Mas essas não são as únicas pautas liberais defendidas durante a campanha e deixadas de lado em nome do projeto de reeleição de Bolsonaro. O governo que defendia a revisão da farra das isenções fiscais promovida na última década aumentou os chamados “gastos tributários” que o ministro da Economia, Paulo Guedes, havia prometido reduzir à metade.

A conta dos benefícios tributários deve superar 330 bilhões de reais neste ano – montante superior aos orçamentos da Saúde, da Educação e da Defesa somados ou o equivalente a mais de onze anos de pagamentos do Bolsa Família. Hoje, para cada 100 reais que arrecada, a Receita Federal abre mão de quase 22 reais. As renúncias fiscais são importantes mecanismos de estímulo à economia e, quando bem implementadas, ajudam a elevar a arrecadação e a proteger setores que, de fato, precisam de socorro em tempos de crise. Mas a concessão de benefícios sem critérios técnicos, e, em muitos casos, negociada em troca de propinas, desvirtuou esse instrumento na última década e transformou boa parte das isenções em privilégios a segmentos com poder de lobby. Ou seja, ao renunciar a tributos que teria a receber, e que deveriam ser revertidos em melhorias de serviços essenciais à população, o governo beneficia sobretudo setores com maior influência política.

“Quem tem poder político consegue desoneração aqui em Brasília”, reconheceu Paulo Guedes em uma audiência pública realizada no Congresso na semana passada. A sinceridade quase desconcertante do chefe da equipe econômica é reveladora sobre a necessidade de revisão dessas distorções históricas. A reforma tributária, cujo debate foi recém-retomado em Brasília, é vista como uma oportunidade sem precedentes para mexer nesse vespeiro. Os empecilhos políticos, entretanto, são incontáveis. Com padrinhos poderosos na Esplanada, empresários fazem pressão para manter seus benefícios, ainda que eles não tragam nenhuma contrapartida à sociedade.

Segundo o Tribunal de Contas da União, parte das renúncias implementadas pelo governo Bolsonaro em 2019, ano em que novas desonerações somaram 183 milhões de reais, ocorreu de maneira irregular, sem a observância de requisitos legais. Esse foi um dos motivos para as contas do primeiro ano de gestão serem julgadas regulares, mas com ressalvas. Entre as benesses assinadas pelo atual chefe do Executivo no ano passado, estão, por exemplo, isenções à indústria de refrigerantes. A decisão foi tomada sem consulta prévia ao Ministério da Saúde, a despeito do grande impacto da medida em políticas desenvolvidas pela pasta, como as de combate ao diabetes e à obesidade. Pressionado por parlamentares do Amazonas e por empresários da Zona Franca de Manaus, Bolsonaro renegou o discurso contrário às desonerações adotado na campanha e beneficiou grandes multinacionais do setor de refrigerantes. Não sem uma reação. Donos de indústrias regionais de bebida questionaram o benefício e associações do setor denunciaram o lobby das grandes corporações internacionais.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéEverardo: é certo reduzir a tributação de iates e aumentar a de consultas médicas?
Um dos benefícios questionados pelo Tribunal de Contas é a desoneração de produtos da cesta básica. Desde o primeiro mandato de Lula, o governo concedeu uma série de desonerações tributárias sobre produtos incluídos na cesta, sob o argumento de que reduzir as alíquotas beneficiaria a população de baixa renda. O problema é que foram incluídos no pacote produtos nada populares, como filé mignon, salmão e queijo gorgonzola. Com isso, a desoneração da cesta básica se tornou o segundo maior gasto tributário do governo. Em 2019, com custo estimado de 32 bilhões de reais, passou a equivaler a cerca de 10% de todas as renúncias. O programa tem praticamente o mesmo custo anual do Bolsa Família, mas estudos apontam que ele tem efeito praticamente zero na redução de desigualdades sociais. A recomendação do TCU foi para que o governo revisse essa política. O fim das isenções chegou a ser avaliado pelo Ministério da Economia como uma possível fonte de receita para o Renda Brasil, o programa social do atual governo. Mas, com medo do impacto negativo na classe média, a equipe econômica recuou.

Determinada a incluir a revisão de benefícios no debate da reforma tributária, a associação que representa os auditores da Receita Federal lançou, no fim de julho, o chamado “privilegiômetro”. O marcador indica a renúncia de quase 700 mil reais por minuto, o equivalente a cerca de 1 bilhão de reais por dia. Até a publicação desta reportagem, o governo já havia gastado 182 bilhões de reais com as desonerações, segundo a ferramenta. A exemplo dos “impostômetros” das associações empresariais, que conscientizam a população sobre a alta da carga tributária, o relógio dos auditores quer chamar a atenção da sociedade para as benesses sem controle concedidas a setores empresariais. “A gente chama esses benefícios de privilégios tributários porque eles beneficiam pequenos grupos, em detrimento da sociedade. É preciso rever essas isenções urgentemente. Gastamos, por exemplo, meio bilhão de reais para incentivar o consumo de água mineral, além de 3,5 bilhões de reais para beneficiar quem investe em Letras Imobiliárias Garantidas. Será que um setor lucrativo como o imobiliário precisa de todo esse incentivo?”, questiona o presidente da associação, Mauro Silva.

A indústria automotiva é uma das grandes beneficiárias das desonerações. Recentemente, foi lançado o programa Rota 2030, que permite a redução de alíquotas de IPI em troca de investimentos tecnológicos. “A ideia era estimular a produção de novos modelos, como carros elétricos, mas foram deixadas brechas para ampliar as possibilidades de isenção. É o Brasil engordando os lucros das matrizes das montadoras, no exterior, e com dinheiro público”, acrescenta Silva. O setor esteve no centro de um grande escândalo envolvendo concessões fraudulentas de isenções: o ex-presidente Lula virou réu na Operação Zelotes por ter editado uma medida provisória que beneficiou montadoras. Segundo o Ministério Público Federal, as reduções de impostos ao segmento foram assinadas em troca de propina.

Segundo a Receita Federal, a proposta de reforma tributária do governo pode eliminar isenções fiscais de até 67,6 bilhões de reais. O risco, no entanto, é o de voltar a tributar os que, de fato, foram prejudicados em tempos de pandemia, em troca da manutenção ou até do aumento dos benefícios já concedidos para castas de privilegiados. O governo já demonstrou a intenção de reduzir, por exemplo, as deduções médicas e de gastos com educação no Imposto de Renda – medida que impactaria principalmente a classe média. Na semana passada, Paulo Guedes criticou a isenção concedida desde 1946 ao segmento de editoras – uma ideia do escritor Jorge Amado. O ministro disse que a doação direta de livros é mais eficiente que a concessão de benefícios fiscais a empresas do setor. A declaração motivou uma saraivada de críticas nas redes sociais, já que a taxação de livros causaria um grande abalo em empresas já fortemente atingidas pela crise.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéLula virou réu na Zelotes por ter editado uma MP que beneficiou montadoras
Ex-secretário da Receita, Everardo Maciel diz que acabar com a isenção de livros é “uma mentalidade perversa”. “Querem reduzir a tributação de carros de luxo e aumentar a de escolas. Reduzir a tributação de iates e aumentar a de consultas médicas. Isso está certo?”, indaga. Ele defende a manutenção de parte dos benefícios já concedidos, mas critica a falta de critérios na autorização e no monitoramento dos efeitos gerados pelas renúncias: “Há excessos, sim, na concessão de benefícios. Mas o contrário do excesso não é a ausência. É a eliminação do excesso”. E acrescenta:  “É claro que há dificuldades políticas. Sempre digo que não existe despesa órfã, toda despesa tem pai e mãe. E se você planeja qualquer mudança, logo aparecem o pai e a mãe da despesa, para dizer ‘nessa aqui, ninguém mexe’. A mesma coisa acontece no gasto tributário. A melhor forma de enfrentar é com transparência, apresentando os dados à sociedade com critérios claros e fazendo um permanente processo de avaliação.”

Presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, Simone Tebet, do MDB, defende um corte de pelo menos 10% do gasto tributário, mas não de forma linear. Ela é a favor, por exemplo, da manutenção do Simples Nacional, que responde por 25% de todos os gastos tributários e deve custar este ano 83,2 bilhões de reais. “O valor é alto, mas não temos como mexer nisso, senão o país quebra. Os micro e pequenos empresários são essenciais para a economia”, diz a senadora.

O receio é que cobranças maiores empurrem esses empreendedores para a informalidade, reduzindo a arrecadação. “Mas, em vez de criar imposto para classe média, como a CPMF, ou aumentar alíquotas de impostos sobre renda e propriedade, um corte médio de 10% nos gastos tributários seria suficiente para dobrar as despesas do Bolsa Família. Seria também uma solução para o programa Renda Brasil”, afirma ela. Um dos principais defensores da agenda liberal, o Partido Novo quer uma revisão ampla das renúncias fiscais. “Acho que até o Simples Nacional pode ser revisto em alguns aspectos, porque faltam incentivos para a empresa crescer. O governo deveria acabar com boa parte das renúncias e usar esses recursos para políticas públicas mais relevantes”, defende o líder do Novo na Câmara, deputado Paulo Ganime.

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  1. Triste país, sem menor possibilidade de futuro. País sub desenvolvido, onde tudo se repete, governo após governo. Triste país...

  2. Bastaria o governo cobrar os impostos devidos à previdência: dos bancos, dos clubes de futebol, das grandes empresas de vários setores! O governo é um gatinho com quem usufrui desse país (os gananciosos) e um verdadeiro leão e algoz com quem o sustenta: o cidadão mortal como eu e você...

  3. Concordo totalmente com o Ivo. Você foi de uma precisão cirúrgica . Ademais a Crusoé está caindo na mesma corrente da Globo etc.; se apequenando . Tá na hora desta revista voltar a sua recente origem e se amesquinhar.

  4. Onde mais se joga dinheiro fora é com os funcionários públicos desnecessários, eminentemente na justiça. Porque vocês da imprensa, não começam a medir a eficiência da justiça? Para que justiça do trabalho? Se vocês começarem a fazer isso, prestarão um grande serviço ao povo e acharão um caminho de crescimento empresarial. Vocês estão começando a se igualar a Globo, Band e UOL, que é o que tem de pior. Sejam diferentes e ajudem o Brasil a superar seu maior problema, que é a justiça.

  5. A revisão das isenções fiscais é um dos pilares do projeto do Ciro Gomes. Sugiro a revista Crusoé fazer um matéria com Ciro Gomes, com o objetivo de aprofundarmos a discussão desta matéria.

    1. Ciro está curtindo a vida com lindas mulheres num Iate de Luxo, digno dos marajás, para se preocupar com reforma tributária. Quando começar a campanha ele aparece como a Marina!!!

  6. Quem tem poder político consegue desoneração aqui em Brasília. E daí? O que é que o sr. Guedes está fazendo aí no governo? Ou o Posto Ipiranga só serve pra passar a flanela no carro do bozo?

  7. Nos disseram que sem a reforma da previdência o Brasil faliria. Hoje vemos que tiraram dos aposentados para dar a amigos empresários, militares e para si mesmos. Eu sabia!

  8. Acabar com as renúncias fiscais pra aumentar o gasto público. NÃÃÃÃÃÃO! É preciso diminuir renúncia para reduzir taxação da classe média. A renúncia é importante instrumento de política fiscal, mas precisa estar adequada, eles não analisam isso, eles olham é se vai pra A e não pra B etc etc

  9. Fala-se muito em Reforma Administrativa e pouco em redução de Cargos Comissionados que hoje somam 60% dos cargos de educação e saúde em Estados e Municipios da Federação, e com certeza essa porcentagem TB deve valer pra o legislativo. Por a culpa nos servidores e não em sua incapacidade dos governantes em gerir é muita covardia.

    1. Katia, muito correta sua visão, parabéns e obrigado por ela....precisamos amadurecer como cidadãos e corrigir as distorções em relação a funcionalismo publico a cargos comissionados. O governo precisa diminuir de tamanho já que não consegue diminuir sua ineficiência....TODOS OS GOVERNOS.....

    2. Perfeito! Mas claro que não vão mexer nesses cargos! Eles servem para abrigar apaniguados e manter o compadrio entre os Poderes.

  10. Essa maldita constituição dita cidadã criou as castas no Brasil, no final quem paga a conta dos desperdícios, da falta de transparência somos nós pobres mortais ordeiros e pagador de impostos. Esse panorama, pode mudar é na escolha dos políticos comprometidos com os anseios da população, então não venda o seu voto nas eleições, queremos um Brasil para todos de forma igualitária, chega de QI, vamos valorizar a meritocracia.

  11. A maioria das isenções fiscais concedidas pelos governos tem comprovadamente impacto zero no processo de desenvolvimento do país. São verdadeiras hemorragias financeiras do Estado. Os técnicos da área sabem que isso é verdade. Não faz o menor sentido p. ex, a indústria automobilística nacional dispor de bilhões de reais para executar a sua mais importante obrigação: desenvolvimento e domínio tecnológico. Esse custo é inerente à existência da indústria e não pode ser atribuído ao Estado.

  12. Entra governo, sai governo e nada muda. Reforma tributária é tabu. Se fazem alguma coisa é só pra prejudicar a classe média. Diferença de classes está longe de ser alcançada no Brasil. Aqui é e sempre será um país pra ricos e poderosos. As micros e pequenas empresas são as que mais geram empregos

  13. Bom artigo. Basta comparar a carga tributária de um par de tênis ou, ainda mais grave, de um automóvel ou um videogame, com a praticada lá fora, que fica patente a urgência duma reforma, passando pela rigorosa redução das isenções mencionadas no artigo.

  14. A venalidade dos políticos em geral não permite racionalidade na prática de isenções como instrumento de incentivo econômico, a falta de um projeto de país também dá margem para a escumalha política manter o país no atraso em todas as áreas.

  15. E você que pensava que pagava impostos pra ter saúde educação transporte etc. Não fique triste, a CPMF, corte nas deduções do IR, etc. vem aí, porque precisamos financiar o "queijo gorgonzola" !!!

  16. Paulo Guedes já morreu e esqueceu de deitar. Nem o próprio Bolsonaro dá bola para ele, quanto mais os empresários e o povo em geral. RIP.

  17. Há várias razões p/essas distorções, mas há aqueles motivos básicos: a) políticos despreparados, incapazes de analisar o alcance e conseq. das leis q votam;b) políticos e func. públicos mal intencionados, q vendem o interêsse da nação e do povo;c) presidentes fracos ou com contencioso de vida q os fragilizam diante daqueles q podem usar contra ele; d) a fome insaciável das "ratazanas do Tesouro", dos setores público e privado. Imaginem isso tudo trabalhando em conjunto,não há nação q resista!

  18. As desonerações milionárias são tão fácil de se conseguir. Um pouco alívio ao contribuinte do Imposto de Renda , com a atualização da tabela o boso não tem em mente.

  19. Falo isso desde o início. Cerca de 600 bi vão para subsídios improdutivos por ano. O Guedes queria cortar no início do governo, mas o Bozo não deixou. Desde então, o Guedes perdeu todas. Imaginem o que um governo decente faria com todo esse dinheiro. Infelizmente, não temos um governo decente para cortar os subsídios e para usar bem o dinheiro público. O Bozo genocida apenas imita o Lula larápio. Simples assim. O Bozolulismo fede!

  20. Mea culpa, mea culpa, mea máxima culpa. Nós elegemos não 300 mas 594 picaretas que tudo querem e nada dão se fôssemos menos burros em aceitar óculos, dentadura, receituário, e outras doações eleitoreiras, teríamos um CN inteligente e verdadeiramente interessado em reformar o país de A a Z asfaltando a estrada para gerações futuras inclusive as próprias mas não por culpa do Guedes ou do Bolsonaro e sim da mediocridade do eleitor e da esperteza do candidato.

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