Governo corta remuneração de peritos de combate à tortura
O governo vai contratar peritos para o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura sem nenhuma remuneração. Para entidades que atuam na defesa dos direitos humanos, a suspensão do salário desses especialistas independentes é uma forma deliberada de esvaziar a estrutura e enfraquecer o combate à tortura. Os profissionais trabalham em tempo integral e...
O governo vai contratar peritos para o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura sem nenhuma remuneração. Para entidades que atuam na defesa dos direitos humanos, a suspensão do salário desses especialistas independentes é uma forma deliberada de esvaziar a estrutura e enfraquecer o combate à tortura. Os profissionais trabalham em tempo integral e fiscalizam presídios, hospitais psiquiátricos e abrigos de idosos para identificar casos de maus tratos. Organizações não governamentais estimam que, sem oferecer nenhuma remuneração, o governo não conseguirá contratar profissionais qualificados e a estrutura ficará comprometida.
A criação do mecanismo atende a compromisso internacional assumido pelo governo brasileiro em 2007, após a ratificação do Protocolo Facultativo à Convenção Contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes da Organização das Nações Unidas, a ONU.
Em junho do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro exonerou todos os peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, que é ligado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e extinguiu os cargos. Dois meses depois, a Justiça Federal suspendeu o decreto de Bolsonaro e determinou que os peritos fossem reintegrados, com remuneração. O governo recorreu até o Superior Tribunal de Justiça, mas perdeu e teve que manter os peritos e remunerá-los.
Inconformados com a decisão, o presidente e a ministra Damares Alves encontraram uma nova saída para esvaziar a estrutura que atua na prevenção de casos de tortura. Os profissionais especializados, hoje contratados como servidores comissionados, recebem mensalmente 12,5 mil reais, entre salário e ajuda de custo. O ministério abriu um edital para contratar novos peritos, mas, desta vez sem nenhuma previsão de remuneração. O processo seletivo foi aberto na última segunda-feira. Hoje, três dos 11 cargos estão vagos.
O governo não quer pagar pelo trabalho dos especialistas, mas não aliviou nas exigências. Os critérios de contratação para as vagas sem remuneração são extensos. O ministério exige “atuação na área de prevenção e combate à tortura e a outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos e degradantes, privilegiando-se aquelas com experiência em inspeção, fiscalização e monitoramento de locais de privação de liberdade”. Entre as tarefas definidas pelo governo, estão a “participação em visitas a locais de privação de liberdade, qualquer que seja a forma ou fundamento de detenção, aprisionamento, contenção ou colocação em estabelecimento público ou privado de controle, vigilância, internação, abrigo ou tratamento”. Tudo isso, sem salário.
O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura é composto por 11 peritos. Pelas regras até então vigentes, os especialistas eram selecionados pelo Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, colegiado que tem integrantes do governo e da sociedade civil, e recebiam como servidores comissionados.
O advogado Henrique Apolinário, da organização Conectas, integra o Comitê de Prevenção e Combate à Tortura como representante da sociedade civil. Para ele, o lançamento de um edital para contratar peritos sem salário é “uma forma de acabar com o Mecanismo Nacional”. “O Brasil assumiu a obrigação internacional de manter pessoas qualificadas nessa atividade. Agora, o governo quer contratar peritos para trabalhar com dedicação exclusiva, mas sem remuneração, o que é um absurdo”, afirma o especialista.
“O presidente tentou acabar com o mecanismo de combate à tortura, mas a Justiça barrou esses planos e determinou a volta dos peritos, com remuneração. Agora, o governo contraria uma decisão judicial para suspender os pagamentos aos especialistas independentes”, critica o advogado. Ele diz que a organização apresentará uma representação à Procuradoria-Geral da República, pedindo a responsabilização da ministra Damares Alves pela conduta.
O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos argumenta que a Lei nº 12.847/2013, que criou o sistema de combate à tortura, não prevê expressamente remuneração para os peritos do Mecanismo. “No entanto, os peritos atuais são remunerados por terem sido nomeados em cargos em comissão DAS 102.4, com remuneração bruta mensal de R$ 10.373,30, de acordo com a previsão do edital que os selecionou”, alegou a pasta.
O ministério argumenta ainda que o lançamento de edital para a contratação de novos peritos não desrespeita a decisão judicial porque a liminar se refere apenas aos peritos em exercício, e não aos futuros contratados. “Como os atuais peritos foram nomeados após atenderem ao chamamento daquele edital, a Justiça entendeu não ser possível mudar a regra do jogo, com o jogo em andamento. O novo edital não tem relação alguma com o anterior e a decisão judicial se aplica aos atuais peritos, e não aos futuros”, argumenta a pasta, em nota.
Segundo o ministério, haverá uma ajuda de custo. “A administração optou por não remunerar os novos peritos, comprometendo-se, no entanto, ao pagamento de diárias e passagens, nos casos de deslocamentos necessários ao desenvolvimento de suas atividades”. A pasta aponta “o aspecto contraditório” que haveria em relação à independência dos peritos, já que ocupam cargos comissionados”.
O esvaziamento do Mecanismo de Combate à Tortura será avaliado pelo Supremo Tribunal Federal. Em julho do ano passado, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, entrou com uma arguição de descumprimento de preceitos fundamentais. Ela alegou que o decreto de Bolsonaro que extinguiu os cargos de peritos e tornou a atividade não remunerada é ilegal.
No último dia 12, o ministro Luiz Fux, relator da ADPF, decidiu submeter o tema a plenário "em face da relevância da matéria e de seu especial significado para a ordem social e a segurança jurídica", apontou o ministro. “A matéria se reveste de acentuada relevância, tangenciando temas afetos à proteção dos direitos humanos”, acrescentou Fux.
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