Lula contra o mundo livre

Nunca antes na história deste país, o Brasil teve uma diplomacia tão do agrado de autocratas, tiranos e terroristas. A apoteose se deu no discurso de Lula na Etiópia, em que o presidente petista comparou a guerra de Israel contra o Hamas ao Holocausto de judeus na Segunda Guerra Mundial. “O que está acontecendo na Faixa Gaza não existe em nenhum outro momento histórico, aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus“, disse Lula. A frase foi tomada como uma ofensa à memória das vítimas do Holocausto e de seus descendentes. Houve protestos na comunidade judaica e no Congresso. Diplomatas americanos e europeus educadamente discordaram da comparação. Mas as palavras foram valorizadas pelos terroristas do Hamas, aqueles mesmos que mataram 1.200 pessoas em Israel, deixaram 6 mil feridos e sequestraram 239 em Israel no dia 7 de outubro. “Nós, do Movimento de Resistência Islâmica (Hamas) agradecemos a declaração do presidente brasileiro Lula da Silva, que descreveu aquilo a que nosso povo palestino está exposto na Faixa de Gaza como um Holocausto”, escreveu o Hamas no aplicativo Telegram.

A declaração assombrosa de Lula não foi um escorregão, um deslize. Foi, sim, a manifestação de uma postura que o PT e boa parte da esquerda sustentam há décadas, tanto que recebeu o endosso de diversas figuras do governo e do partido. “A fala do Lula sacudiu o mundo e desencadeou um movimento de emoções que pode ajudar a resolver uma questão que a frieza dos interesses políticos foi incapaz de solucionar”, disse Celso Amorim, assessor especial do presidente da República. “Orgulho do meu marido”, escreveu a primeira-dama Janja no X. “O presidente Lula levanta sua voz e usa sua autoridade”, escreveu o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida. “A histórica declaração do Lula deixou ainda mais evidente o genocídio do governo de Israel contra o povo palestino”, escreveu João Pedro Stédile, líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, o MST. Pedidos para que Lula se retratasse foram solenemente ignorados.

A comparação feita por Lula foi, afinal, intencional, um sintoma de uma política externa avessa a debates internos e distante dos fatos. Sua natureza ideológica pode ser constatada na recepção que suas palavras tiveram no exterior. O governo de Israel declarou Lula persona non grata. Foi a primeira vez na história que isso aconteceu com um presidente brasileiro. Dias depois, por ocasião de uma reunião de ministros de Relações Exteriores do G20 no Rio de Janeiro, o secretário de Estado americano Antony Blinken reuniu-se com Lula em Brasília na quarta, 21. Em seguida, o porta-voz do Departamento de Estado afirmou: “O secretário teve a oportunidade de discutir os comentários com o presidente Lula no encontro, no contexto da discussão geral sobre o conflito em Gaza, e deixou claro que são comentários com os quais discordamos”. A ministra de Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, que também veio ao país para o encontro do G20, disse: “O Holocausto não pode ser comparado a nada. Seis milhões de judeus foram mortos pelo meu país, por fascistas na Alemanha que deliberadamente queriam acabar com a vida humana, a vida judaica. Não apenas na Alemanha, mas em toda a Europa”.

No lado oposto, além do Hamas, quem elogiou a fala de Lula foram os autocratas e ditadores latino-americanos. “O que estão fazendo, como disse o presidente Lula da Silva na reunião da União Africana, o que estão fazendo a partir do governo israelense é a mesma coisa que Hitler fez contra o povo judeu”, disse o venezuelano Nicolás Maduro. “Toda nossa solidariedade vai para o nosso querido irmão Lula, presidente do Brasil, declarado persona non grata em Israel por sua denúncia sincera do extermínio da população palestina em Gaza”, escreveu o cubano Miguel Díaz-Canel. “Ser declarado persona non grata por um governo genocida que realiza massacre contra crianças é um privilégio”, escreveu o ex-presidente boliviano Evo Morales.

Para qualquer um que acompanhou a trajetória de Lula, de Celso Amorim ou do PT, a diplomacia sectária do atual governo não surpreende. Nos dois primeiros mandatos de Lula como presidente, o governo brasileiro condenou o assassinato do chefão do Hamas, Ahmed Yassin. O presidente ainda pediu que o Hamas fosse incluído em negociações de paz com Israel. Afagos entre petistas, ditadores bolivarianos e africanos, grupos armados, como as Farc, e criminosos, como Cesare Battisti, sempre foram uma constante. Hoje, o alinhamento da diplomacia brasileira se dá, em primeiro lugar, com o presidente russo Vladimir Putin, o homem que ordenou a invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022.

Sob Lula, o Brasil nunca condenou a invasão russa da Ucrânia. Não apenas isso, o país se declara contra as sanções do Ocidente a Putin e tem aumentado exponencialmente a importação de diesel, financiando de maneira indireta a máquina de guerra russa. A solidariedade é total. Na sexta, 16, o dissidente russo Alexei Navalny morreu em uma prisão na Sibéria. Diversos chefes de governos democráticos prontamente responsabilizaram o governo russo e começaram a planejar uma nova rodada de sanções contra o regime e seus funcionários. Lula, ao ser perguntado sobre a morte de Navalny, afirmou: “Para que essa pressa de acusar alguém? Sabe há quantos anos estou esperando o mandante do crime da Marielle (Franco)? Seis, e não estou com pressa de dizer quem foi, não quero especulação”. Na quarta, 21, o ministro de Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, apertou a mão do chanceler russo Sergey Lavrov no Rio de Janeiro. Na contramão dos americanos e europeus, os dois conversaram sobre “ampliar e diversificar o comércio bilateral, que atingiu recorde em 2023”.

Com ajuda de Brasil, Índia, Coreia do Norte, China e Irã, a Rússia tem resistido muito bem às sanções ocidentais e abastecido sua máquina de guerra, que se prepara para receber mísseis balísticos iranianos. Com essa rede de apoio mundial, a Rússia manteve sua capacidade de se meter em conflitos armados no Azerbaijão, no Mali, no Sudão, na Síria, na Líbia, e, claro, na Ucrânia. Caso o ditador Maduro tente abocanhar um naco da Guiana, então a Rússia passaria a se envolver em mais uma guerra. Se o Brasil estivesse genuinamente preocupado com a paz, a primeira coisa a fazer seria se afastar do Kremlin.

O posicionamento do Brasil gera muita preocupação, porque o mundo atual está mais polarizado e perigoso do que aquele de vinte anos atrás. “A grande divisão do mundo hoje não é entre esquerda e direita, leste e oeste, mas entre democracias e autocracias. A ideia de que nós viveríamos hoje em um mundo multipolar é um truque. Na verdade, o mundo já está em uma segunda grande Guerra Fria, que não é uma cópia da primeira. Não é que temos os Estados Unidos de um lado e a China do outro, ocupando o lugar que era da União Soviética. Agora o que temos é um eixo autocrático, formado por países que se ajudam mutuamente com o fim de exterminar as 32 democracias liberais que ainda restam”, diz o escritor Augusto de Franco, colunista de Crusoé.

A multipolaridade, conceito frequentemente mencionado por Lula e seus asseclas, foi um sonho que já acabou. Essa ideia prosperou no início do milênio, depois de uma década em que os Estados Unidos dominaram sozinhos o mundo e a globalização expandiu as trocas comerciais. Em vez disso, a multipolaridade entende que potências médias teriam um papel estratégico maior. Lula, que assumiu o Palácio do Planalto em 2003, é um devoto desse conceito. Em 2006, a criação dos Brics, bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, parecia concretizar essa ideia.

Mas o mundo mudou bastante desde então. A crise financeira de 2007/2008 afetou a crença nas bases do capitalismo e fortaleceu o protecionismo. A ascensão econômica chinesa virou uma ameaça para empresas americanas. Com Donald Trump entrando na Casa Branca, em 2017, uma guerra comercial entre China e Estados Unidos teve início. “Foi nesse momento em que começaram as discussões sobre uma nova Guerra Fria. Mais tarde, a invasão da Ucrânia e a aliança sem limites entre Rússia e China consolidaram essa visão”, diz o pesquisador de relações internacionais Daniel Buarque, que estuda a maneira como o mundo vê o Brasil.

A cabeça dos petistas, contudo, não se atualizou. Para eles, o mundo continua sendo multipolar. Assim, toda vez que eles retomam esse conceito ou agem de acordo com ele, enfraquecem o lado ocidental e fortalecem o eixo autocrático. “Os dois principais problemas da política externa hoje são a busca desenfreada por um protagonismo a qualquer preço e o anacronismo ideológico. O mundo de hoje não é o de duas décadas atrás, quando Estados Unidos e China se davam bem e a globalização avançava. Agora, estamos diante de um cenário mais perigoso, e ficar no mesmo lugar em um mundo em movimento significa retrocesso”, diz o embaixador Sergio Abreu e Lima Florêncio.