Alejandro Zambrana/Secom"Contaminado pelo clima, o eleitor tinha uma única pergunta: 'Você é Lula ou Bolsonaro?'"

Os liberais não passaram ilesos

Sem um líder claro ou capacidade de articulação para além das vias estreitas que sobraram, o campo liberal-democrático viu seus partidos se enfraquecerem, se esfacelarem em lutas internas, e inviabilizarem a eleição de alguns dos seus melhores nomes
07.10.22

A história das eleições brasileiras de 2022 foi a história do bolsonarismo contra o lulismo. Em um cenário que contava com outros nove candidatos à presidência, Luis Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro obtiveram somados mais de 91% dos votos. Suas candidaturas sufocaram os campos políticos adjacentes e transformaram parceiros fiéis em campeões de popularidade. O cenário foi ainda pior para quem disputava uma vaga nas Assembleias Legislativas ou na Câmara dos Deputados, de onde os não alinhados à polarização ficaram próximos de desaparecer.

Os liberais não passaram ilesos ao fenômeno, e terão quatro anos dificílimos para a reconstrução de sua representação parlamentar. Neste ano, o exíguo tempo para campanha e divulgação dos números dos candidatos já dificultavam o trabalho baseado em um bom cartel de realizações ou projeto de mandato. Sobravam assim ao candidato, sua capacidade individual de mobilização como político-personagem —que tem ligação direta com o eleitor por sua personalidade ou dedicação a uma pauta específica— ou a associação a um líder político que o chancelasse. Nesta década, começar do zero ficou mais fácil, mas receber a atenção do eleitor ficou bem mais difícil.

A forma como a informação chega ao eleitor também mudou nos últimos anos. Perderam influência as vias institucionalizadas, a informação que vem de cima para baixo, dos jornais e revistas, dos especialistas e dos grandes oradores. Hoje a informação vem de todos os cantos, por todos os lados. Todos a produzem, todos a disseminam, todos a confirmam ou contestam. A aproximação com o consumidor que transformou profissionais em estrelas também trouxe a contestação generalizada às suas atividades, dos jornalistas aos cientistas.

Nesse contexto de descrença sobre o establishment e suas ações, além da desconfiança sobre seus interesses, a definição das prioridades programáticas ou da agenda para o período eleitoral deixa de ser feita pelas elites intelectuais, financeiras ou partidárias, e passa a acontecer de forma mais fluída, dispersa e responsiva às demandas de grupos específicos da população. Em seu livro The Revolt of the Public, lançado em 2014, Martin Gurri descreve que vivemos há pouco mais de uma década em um processo de ataque aos “guardiões de autoridade”, de fontes estabelecidas e legítimas de informação e poder. O
público que até então era apenas espectador dos ditames de uma elite passa a ser ator. A comunicação digital na mão do público permite a existência de um ambiente de conflito permanente, de confronto de pontos de vista. Como Gurri menciona, a esfera pública se tornou uma batalha campal.

Contaminado pelo clima, o eleitor tinha uma única pergunta em 2022: você é Lula ou Bolsonaro? Para ganhar o voto, era necessário não apenas ter uma resposta para a pergunta, mas estar engajado na disputa que ela anuncia. Se o embate entre os dois candidatos era uma questão central para o futuro do Brasil, o eleitor queria indicar soldados para o seu lado. Neste caso, infelizmente para os liberais, boas respostas sobre caminhos alternativos à dualidade apresentada não satisfaziam aqueles que buscavam aliados na guerra contra o outro lado.

As mudanças descritas por Gurri, crescentemente perceptíveis no Brasil dos últimos anos, nos apresentou um novo tipo de campanha política. Nele, os grupos ligados a figuras carismáticas, como os lulistas e os bolsonaristas, levam vantagem sobre os grupos que veem a ação política sob a ótica da racionalidade argumentativa, dos gráficos e das políticas públicas baseadas em evidências.

A autoridade do jornalista que seleciona um deputado de ideias, que se aprofunda nos temas, e até municia seus pares com argumentos foi substituída pelos algoritmos de um vídeo viral, gravado por outro parlamentar que se comunica diretamente com um público mais ligado e interessado em seus temas e seu nome do que um espectador distraído do Jornal Nacional jamais será. Não se sabe por quanto tempo esta tendência permanecerá, mas, enquanto os liberais trabalhavam pela sua presença na política e em instituições relevantes da sociedade democrática, o mundo mudava sob nossos pés.

A dificuldade de construção de uma narrativa sólida de oposição ao bolsonarismo e ao lulismo também dificultou a vida de quem buscava votos entre os dois campos dominantes na política nacional. Lula e Bolsonaro jamais deixaram de fazer campanha eleitoral. Por outro lado, uma coalizão de partidos formada a poucos meses das eleições e minada internamente por disputas entre caciques não é campo fértil para a construção de um programa estruturado, base para o florescimento de uma alternativa à polarização.

Sem um líder claro ou capacidade de articulação para além das vias estreitas que sobraram, o campo liberal-democrático viu seus partidos se enfraquecerem, se esfacelarem em lutas internas, e inviabilizarem a eleição de alguns dos seus melhores nomes. Em Pernambuco, Daniel Coelho obteve mais de 110 mil votos, foi o 11° mais votado no estado, mas não foi eleito pois a federação PSDB e Cidadania não atingiu o quociente eleitoral. O mesmo se repetiu no Espirito Santo, onde Felipe Rigoni, o 6° mais votado no estado, perdeu sua vaga pela fragilidade da chapa do União Brasil. Em Minas Gerais, onde o Novo reelegeu o governador Romeu Zema, o partido não elegeu um único deputado federal.

Há pouco mais de uma década, a presença de autodeclarados liberais nas câmaras de vereadores, assembleias legislativas e na Câmara dos Deputados pareceria um sonho distante. O progresso recente se deve à coragem de pioneiros que colocaram trabalho e recursos à disposição da melhoria do país, e eles nos fizeram muito bem.

Mas a beleza e a tristeza da política é que a vontade do eleitor é soberana, imprevisível e, às vezes, independe do que a atuação de cada um agrega à sociedade. As inestimáveis perdas sofridas pelos liberais nas eleições de 2022 não serão compensadas por reflexões no debate público. Dezenas de vozes estarão fora de uma legislatura importante, vitimados pela disputa entre dois gigantes populares e pela decisão dos eleitores que buscavam respostas simples num quadro de polarização complexo.

Nós temos hoje uma geração valorosa disposta a trabalhar para vencer pela construção de alternativas às forças destrutivas que dominam o cenário político nacional. Circunstâncias e conjunturas mudam. O pêndulo da política vai e vem. É necessária a construção de um campo sólido, que reúna lideranças em torno de um programa básico. Responsabilidade fiscal, social e ambiental, com reforma do Estado, enxugamento da máquina e avaliação de políticas públicas. Soluções de mercado para a geração de oportunidades com foco em quem mais precisa. Simplicidade para quem gera emprego. Abertura para a inovação, ciência e tecnologia, integrando o Brasil ao mundo. Respeito aos direitos  humanos e valorização da diversidade. Uma agenda moderada e gradualista, que substitua a gritaria pelo diálogo, mas que mantenha uma identidade clara.

Em torno dessa agenda comum, é preciso atenção à capacidade de manter lideranças mobilizadas, evitando a dispersão e as pequenas disputas. Quem sabe, agregadas em menos partidos e mais ligadas aos novos meios de construção de reputação e autoridade política. É um sonho distante, mas possível. Depois de uma derrota sofrida, do terreno arrasado, o que nos sobra é juntar os cacos e reconstruir o que perdemos. Temos a oportunidade de construir um campo novo sobre aquele que foi devastado. E o trabalho precisa começar agora.

 

Magno Karl é cientista político e diretor-executivo do Livres

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Gostei do artigo. É claro. Fiquei aqui me perguntando o que o governador Zema do Novo fez. Ele foi um dos que foi reeleito no 1º turno e praticou o liberalismo na administração do Estado. Com sucesso e reconhecimento dos mineiros. Porque será?

  2. Precisamos cobrar e obter Planos e Propostas de Governo dos candidatos á Presidência da República e aos Governos dos Estados da Federação por escrito e assinados. Não podemos aceitar afirmações e propostas genéricas e inexequíveis! Isso deve ser cobrado com antecedência nos próximos debates na BAND, no SBT e na GLOBO.

  3. Temos que mudar o sistema político brasileiro, se quisermos valorizar os votos que damos. Nesse sistema atual, vota-se em um candidato e elege-se outro. Um desatino!

  4. Atingir esse ideal requer Educação Básica de qualidade coisa distante no momento. Texto de grande maturidade. Parabéns ao Livres.

  5. Nem só de economia vive o eleitorado. Nossos liberais parecem ignorar que o ideário liberal vai muito além das suas matrizes económicas.

  6. Vejo o quanto somos enganados, fala-se em democracia, mas para quem? Vc bem mostrou o sistema político brasileiro é uma farsa, por isso esses caciques jamais saem do poder, nunca haverá renovação necessária tem político há 30 anos no poder. Teria que ser igual a qualquer eleição, um mandato reeleição e cair fora.. pelo mesmo tempo que legislou.

  7. O campo liberal democrático sofreu uma grande derrota nestas eleições de 2022. Isto aconteceu porque este campo ideológico tinha ideias e argumentos sólidos, mas não tinha pessoas que personificassem estes ideais doutrinários de forma clara. Infelizmente as massas de votantes tem preguiça de pensar. As doutrinas e as ideologias são muito áridas para a esmagadora maioria da população. Se não surgirem líderes que personifiquem com clareza os ideais liberais e democráticos, tudo desaparece.

  8. Penso que a construção de alternativas, como as que o articulista propõe, passaria pela variável econômica em primeiro lugar, criando uma classe média muito maior quantitativamente que a atual, e segundo pela fomentação das atividades científicas para crianças desde a base, de forma que a conjunção desses dois fatores básicos possa gerar a massa crítica necessária para atingir alguns objetivos básicos e tirar o país dessa falsa dicotomia, que só interessa aos beneficiários diretos desse status.

  9. Excelente! De eleições em eleições vamos amadurecendo nosso pensamento crítico em relação ao que seja democracia de fato! Chegará o dia em que nossos netos e bisnetos poderão escolher os melhores de acordo com as suas convicções. - entre candidatos realmente comprometidos com os ideais dos seus partidos.

  10. Uma metade do eleitorado votou no Alibaba com medo do Demolidor e a outra metade votou no Demolidor com medo do Alibaba. O amadurecimento político do brasileiro passa pelo medo definitivamente. Faz parte do aprendizado.

  11. Ótimo texto! Infelizmente nessa eleição bons candidatos não foram eleitos ou não se reelegeram. O Brasil que perde 😌

  12. Vou dizer aqui a coisa mais importante, que o artigo inteiro não disse: falta, aos liberais, um LÍDER de verdade, com substância, carisma, e que saiba SE COMUNICAR COM O POVO. Não é falar para meia-dúzia de classe média alta de nível superior, que entende mais a fundo de questões econômicas e fiscais, por ex. Esse tipo de discurso não elege ninguém. Quem elege qualquer candidato, no Brasil, é a massa - o POVÃO. Ou você aprende a se comunicar bem com ele, ou... você não recebe votos. E acabou.

    1. Será que o ALIBABA já aprendeu a diferença entre uma fatura é uma duplicata ¿

    2. Sim, Vitor, eu comentei sobre o post do outro leitor. Que Lula esteja fingindo uma aliança com liberais é óbvio. Ele é o rei do fingimento como Ciro aliás já falou num debate ao chama-lo de encantador de serpentes. Mas daí a dizer que ele é liberal há um evidente erro de avaliação.

    3. Ah bom, talvez você esteja respondendo ao comentário do Paulo José abaixo... Neste caso, peço desculpas - entendi errado. Mesmo assim, entendo o que o Paulo José quis dizer: Bolsonaro é tudo menos um liberal. Autoritário, conservador nos costumes (pelo menos no discurso), incentivador da mistura de religião com política... enquanto Lula, com tudo de ruim que ele tem, pelo menos está tentando fazer um "compromisso" com os economistas de linha mais liberal. É fato, não adianta negar.

    4. Em que lugar na matéria você leu que o Lula está sendo chamado de Liberal? Tá maluco? Ou não sabe ler?

  13. 1/2- Bolsonaro atraiu os liberais com o seu discurso mentiroso de liberal na economia e conservador nos costumes. Com o passar do tempo, o governo Bolsonaro se consolidou como populista, corporativista e reacionário. Bolsonaro ataca os dois pilares da civilização: democracia e ciência. A pergunta que se faz: os liberais do Brasil são adeptos do obscurantismo, pois boa parte ainda estão com o Bolsonaro?

    1. 2/2- Como um iluminista, não acho que os ditos liberais, como o Partido Novo, me representa. Hoje no Brasil, ser liberal é votar no Lula 13.

  14. Acho curioso insinuar que a responsabilidade da não eleição desses representantes liberais é da não atenção do eleitorado às pautas e realizações dos mandatos dos representantes. E a questão da não aderência da pauta ao eleitor? O que ficou claro é que o eleitor não se importa e se interessa pelos tópicos listados no penúltimo parágrafo. Não aceitar esse fato é se condenar a repetir a mesma performance nas próximas eleições.

  15. Não tivessem soltado o Lula, na intenção de recuperar as distribuições de benesses do poder, não haveria esta polarização. Bolsonaro teria que enfrentar concorrentes mais expressivos e com certeza encontraria muito mais dificuldades para conquistar votos. Poucos estão votando considerando os feitos do governo, nem ajudas em dinheiro comprou votos. Os votos em Bolsonaro continua sendo unicamente votos contra Lula.

  16. Muito bom! Concordo. A dispersão desse grupo levou a esse tombo. Tomara que consigam reunir todos em um partido só. Lamentável o que a disputa interna fez com o partido Novo.

  17. Contem comigo para a reconstrução de um partido liberal-democratico ou , como a Elena Landau gosta de dizer, um partido liberal por inteiro.

Mais notícias
Assine agora
TOPO