ReproduçãoFotos divulgadas pela ditadura em dezembro mostram Álvarez abatido; textos não o tratam como "bispo"

O martírio de Dom Álvarez

Ao recusar o desterro, bispo nicaraguense torna-se o principal nome da oposição ao tirano Daniel Ortega 
17.02.23

O ditador Daniel Ortega e sua esposa e vice Rosario Murillo destruíram toda a oposição da Nicarágua desde que chegaram ao poder pela última vez, em 2007. Políticos, empresários, agricultores, padres, jornalistas e defensores dos direitos humanos foram forçados ao exílio. Aqueles que não deixaram o país foram detidos e passaram a integrar um grupo de 237 presos políticos. Desses, quase todos tiveram a nacionalidade retirada e foram deportados em um voo para Washington, na quinta (9). Mas nem todos os que tiveram seus nomes incluídos na lista de passageiros chegou ao destino. Um dos que fincaram o pé foi o bispo da cidade de Matagalpa, Rolando José Álvarez Lagos. Ao recusar o desterro, esse religioso de 56 anos tornou-se a figura mais forte da oposição à ditadura sandinista em solo nicaraguense.

No mesmo dia em que despachou seus desafetos, o tirano Ortega proferiu um discurso raivoso contra o bispo teimoso. Falou que ele delirava ao se acreditar o líder da Igreja na Nicarágua e na América Latina e que até pensava em se tornar o papa. Menos de 24 horas depois, Álvarez foi condenado a 26 anos e quatro meses de prisão, acusado de diversos crimes como conspiração, propagação de fake news e desacato à autoridade. Ele também foi multado em 58 mil córdobas, o equivalente a 1.555 dólares. No leque das punições, uma é especialmente reveladora do apreço que Ortega tem por ele. Álvarez teve  extirpados os seus direitos de cidadão. Assim, ele não poderá se candidatar a uma eleição ou exercer um cargo público. O bispo nunca esboçou qualquer ambição de ocupar um espaço na política nacional. Mesmo assim, o paranoico ditador está apavorado com a possibilidade de Álvarez se tornar seu rival.

Para podar o prestígio de Álvarez, a ditadura se refere a ele sem o título de “bispo” e publica fotos dele sem a batina, como um cidadão comum. Da prisão domiciliar a que foi submetido em agosto, Álvarez foi agora enviado para uma cela apelidada de “Inferninho” na cárcere Modelo, em Tipitapa. Ele está totalmente isolado, sem contato com outros detentos. Seus familiares estão sem receber informações. “Rolando optou por ficar no país. Ele é um homem de princípios e, a partir de agora, lutará pelas nossas liberdades desde os calabouços do regime”, afirma um religioso nicaraguense que pediu anonimato.

Não há nada que Álvarez tenha feito que justifique as condenações esdrúxulas que recebeu. No passado, ele também foi acusado de “ameaçar a integridade nacional”, “organizar grupos violentos”, “executar atos de ódio contra a população” e “prejudicar a sociedade e o governo nicaraguense”. Nada disso faz qualquer sentido. Na tentativa de forjar acusações contra o bispo e sem qualquer evidência de crimes, a ditadura precisou coagir testemunhas para inventar histórias. Como resultado, três nicaraguenses que foram escalados para falar no tribunal preferiram deixar o país a ter de depor contra o bispo.

O que direcionou a fúria de Ortega contra ele é o fato de ser um homem muito popular e conhecido nacionalmente. Em 2011, Álvarez foi transferido da capital Managua para Matagalpa, no interior do país. No dia em que ele chegou de carro ao município de 160 mil habitantes para assumir a cúria, a população o esperava com festa nos acostamentos da estrada. Seu carisma cresceu ainda mais quando ele começou a se deslocar a cavalo, de barco e no lombo de mulas para chegar às comunidades mais longínquas, que aproveitavam sua presença para celebrar batizados e casamentos. Álvarez chegou a rezar missa dentro de ônibus e realizava muitas festas em sua paróquia. Em um vídeo de 2017 (acima), ele aparece dançando em um palco ao lado de integrantes da pastoral da juventude e à frente de centenas de pessoas animadas. “Rolando é um líder religioso de verdade, pois sempre esteve muito próximo das paróquias e das comunidades”, diz a socióloga nicaraguense Elvira Cuadra, diretora do Centro de Estudos Transdisciplinares da América Central, que vive exilada na Costa Rica. O bispo ainda ganhou proeminência ao apoiar um movimento de agricultores contra um empreendimento de mineração e deu voz às vítimas dos abusos policiais.

Mas foi em 2018 que ele passou a chamar a atenção do ditador. Em abril daquele ano, a ditadura reprimiu uma manifestação popular com paramilitares e franco-atiradores. Mais de 350 pessoas morreram, incluindo uma estudante brasileira, Raynéia Gabrielle Lima. Em seguida, Ortega e Rosario aceitaram participar de uma mesa de negociação com a oposição, a qual ganhou o nome de Diálogo Nacional. Sob a mira das câmeras de televisão, o casal foi colocado contra a parede e criticado por jovens estudantes, que os culparam por mortes e torturas. A mediação ficou por conta da Conferência Episcopal da Nicarágua, e Álvarez foi escalado para o serviço. As conversas acabaram em nada, com a ditadura abandonando a mesa de negociações e iniciando uma caçada aos que participaram dela.

A perseguição não deu trégua. No ano passado, as investidas contra a Igreja Católica cresceram e tiveram eco até na campanha presidencial brasileira. No início de agosto, Álvarez foi impedido de rezar uma missa, após ele ter criticado o fechamento de rádios católicas. Em seguida, ele saiu da igreja com o ostensório que guarda a hóstia em mãos. Dezenas de policiais fizeram um cordão de isolamento e as pessoas não puderam se aproximar. Cercado por oficiais, ele, cinco padres, dois seminaristas e dois leigos permaneceram morando na igreja, impedidos de receber alimentos, roupas, remédios e produtos de higiene. No dia 19 desse mês, a polícia entrou na igreja e prendeu todos que estavam no local. Álvarez foi colocado em um veículo separado e levado para Managua, onde ficou na casa de familiares, sob intensa vigilância.

ReproduçãoReproduçãoÁlvarez, com o ostensório: pessoas não puderam se aproximar
O acosso ao bispo e a padres católicos ocorreu sem que o papa Francisco desse um pio. À época, Jair Bolsonaro foi o único presidente da América Latina a demonstrar solidariedade aos padres locais. Somente depois que Álvarez se recusou a subir no avião e foi levado para uma solitária o papa abriu a boca. “Não posso deixar de lembrar com preocupação o bispo de Matagalpa, Dom Rolando Álvarez, de quem gosto muito, condenado a 26 anos de prisão e também as pessoas que foram deportadas para os EUA”, disse Francisco. Sem mencionar o ditador Daniel Ortega, a declaração foi inofensiva.

Mas a projeção que Álvarez pode ganhar não é no Vaticano, em Roma, e sim entre os fiéis católicos nicaraguenses, que representam mais de 40% da população. “A estrutura hierárquica da Igreja continua silenciosa e boa parte dela é cúmplice deste regime”, diz a feminista nicaraguense Ana Quirós, também exilada na Costa Rica. “Sua influência se dá de maneira mais direta, entre os católicos praticantes que o veem como um exemplo. Isso inclui até mesmo pessoas que fazem parte da Frente Sandinista de Libertação Nacional, o partido oficial.”

Das 58 notas à imprensa emitidas pelo Itamaraty neste governo petista até esta quinta (16), nenhuma citava a Nicarágua. O Brasil se omitiu tanto em relação ao desterro de 222 nicaraguenses quanto à sentença de 26 anos de prisão dada a Álvarez. Os ventos do continente mudaram. Vale lembrar que, quando ainda era candidato, Lula fez uma declaração emotiva quando foi questionado pelo então presidente Jair Bolsonaro sobre sua amizade com o ditador em um debate na televisão. “O regime político da Nicarágua é uma coisa que depende deles”, disse Lula. “Então, se o Daniel Ortega está errando, o povo da Nicarágua que puna o Daniel Ortega.” A julgar pela força dos protestos desde 2018 e pelo número de exilados, desterrados e presos, os nicaraguenses até gostariam de se expressar contra o tirano. O problema, que Lula não quer enxergar, é que eles têm pagado um preço muito alto quando tentam fazer isso. Para as vítimas de ditaduras como a da Nicarágua, não se vê solidariedade alguma.

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