RS/ via Fotos PublicasBolsonaro com o pastor Silas Malafaia: minuta constitucional?

O jogo da lei

As dúvidas e as certezas jurídicas que podem definir o futuro do ex-presidente Jair Bolsonaro
01.03.24

O ex-presidente Jair Bolsonaro e os advogados de sua defesa iniciaram o que deverá ser uma longa e difícil empreitada para evitar sua condenação e prisão pelos crimes de golpe de Estado e abolição violenta Estado Democrático de Direito — ambos instituídos pela Lei 14.197, promulgada pelo próprio Bolsonaro em 2021.

Essa batalha já engloba orientações para o ex-presidente proferir discursos e dar entrevistas a jornalistas, estratégias para depoimentos na Polícia Federal e o envio de recursos ao Supremo Tribunal Federal. No campo jurídico devem ser exploradas desde controvérsias doutrinárias até questões processuais daquele tipo que que por diversas vezes — como na Lava Jato, por exemplo — já resultou na anulação de provas e processos.

Num momento em que os ministros do STF atuam de maneira cada vez mais política, Crusoé fez um levantamento dos principais argumentos elaborados pela defesa de Bolsonaro e, com base em entrevistas com especialistas em direito penal e constitucional, avalia suas chances de sucesso.

*****

Nada do que Bolsonaro fez pode ser qualificado como crime

No ato na avenida Paulista no domingo, 25, Bolsonaro sustentou que querem puni-lo pela mera existência de um documento que prevê a utilização de uma ferramenta prevista na Constituição, o estado de defesa. Isso seria absurdo, porque nem mesmo o primeiro passo para tirar a ideia do papel teria sido dado.

Disse o ex-presidente: “Agora, o golpe é porque tem uma minuta de um decreto de estado de defesa. Golpe usando a Constituição? Tenha a santa paciência. Deixo claro que estado de sítio começa com presidente convocando conselho da República. Isso foi feito? Não. É o Parlamento que decide se o presidente pode ou não editar decreto de estado de sítio. O da defesa é semelhante. Agora querem entubar em todos nós um golpe, usando dispositivos da Constituição cuja palavra final quem dá é o Parlamento”.

Essa descrição dos fatos tem chances nulas de prevalecer, porque outros indícios colhidos pela investigação até o momento mostram que se pretendia, antes de mais nada, dar aparência de legalidade a uma empreitada essencialmente militar. Compondo o conjunto da obra há declarações como a do general Augusto Heleno sobre “virada de mesa”; as instruções do general Braga Netto, candidato a vice na chapa de Bolsonaro em 2022, para que o comandante do Exército fosse atacado e constrangido no meio militar como “cagão”; as mensagens no celular do tenente-coronel Mauro Cid mostrando que o general Estevam Theophilo, responsável pelo Comando de Operações Especiais, concordaria em participar da trama se Bolsonaro assinasse a minuta; e a reunião do próprio ex-presidente com a cúpula das Forças Armadas, na qual ele teria sido ameaçado de receber voz de prisão caso insistisse na defesa de seu plano.

Para os advogados e juristas ouvidos por Crusoé, portanto, a discussão relevante diz respeito ao momento em que os crimes pelos quais Bolsonaro pode ser denunciado começam, de fato, a ser executados.

Sempre anamorado do latim, o direito penal fala do “iter criminis”: o caminho percorrido pela pessoa que comete um crime. A primeira fase é a da intenção, que nunca é punida. Todo mundo pode pensar em cometer um delito qualquer, mas, se nada é feito, então não há delito algum. A segunda fase é a da preparação ou dos “atos preparatórios”, que pode incluir a compra de uma arma de fogo, por exemplo. A fase seguinte é a da execução do crime, quando o tiro é disparado, seguindo no mesmo exemplo. Por fim, pode haver ou não a consumação, que seria a morte da vítima.

O debate que será travado é se as reuniões no Palácio do Planalto, as conversas de WhatsApp e a elaboração de minutas poderiam ser consideradas não apenas como cogitação ou preparação de um crime, mas como início de sua execução. O fato de os crimes dos artigos 359-L e 359-M do Código Penal falarem em “tentativa” de abolir o Estado Democrático de Direito e o governo legitimamente eleito (golpe de Estado) torna a discussão ainda mais complexa.

De um lado estão especialistas como Fabio Tavares Sobreira, professor de direito constitucional, para quem o fato de Jair Bolsonaro ter acatado a vitória de Lula afastaria a aplicação da lei penal. “Bolsonaro ficou em silêncio após a divulgação do resultado, a transição teve início em novembro daquele ano e Lula tomou posse no início de janeiro”, diz Sobreira. Como a história seguiu seu curso, nçao seria possível falar em crime.

Rubens Beçak, professor de direito constitucional na Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto, segue lógica semelhante. “Uma coisa é ter vontade, refletir imaginar, pensar. Outra coisa é fazer, executar”, diz ele. “Mesmo que esses atos tenham sido pensados, eles não saíram do ambiente de uma sala fechada, em que as coisas não eram ditas com todas as letras. Entendo que Bolsonaro estava com dificuldade de se conformar com a derrota nas urnas, mas é isso. A menos que apareça algo novo, não vejo nenhum ato concreto que possa atentar contra o Estado Democrático de Direito ou o governo eleito.”

Há quem sustente posição contrária, dizendo que, se é verdade que nada aconteceu e Lula subiu a rampa do Palácio do Planalto, isso não se deveu a Jair Bolsonaro, e sim a outras pessoas, que não embarcaram na sua trama. “Documentos foram elaborados para convencer os militares a aderir. Sendo assim, entendo que isso já poderia ser o início da execução do crime, o qual só não se consumou por motivos alheios à vontade do agente”, diz o advogado criminal Fernando Castelo Branco.

O criminalista Davi Tangerino pensa de maneira semelhante. “Tentar é colocar em curso um plano delitivo que não chega ao resultado por circunstâncias alheias à vontade do agente“, afirma. “Tanque na rua não seria tentativa de golpe, já seria golpe. Porque não há força institucional que possa se contrapor às militares. Então, na medida em que Bolsonaro procura convencer as Forças Armadas a aderir ao seu plano, já estamos no campo da execução da tentativa de golpe.”

Uma posição intermediária é representada pelo ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr. — que, aliás, ajudou a redigir a lei que introduziu os crimes que estão sendo discutidos no sistema penal. Ele acredita que é preciso levar em conta todo o enredo que partiu do ataque sistemático ao processo eleitoral e desembocou no 8 de Janeiro, onde a fase dos “atos preparatórios” é efetivamente superada. “Será a conjugação de todas as provas e indícios que permitirá criar ou não uma narrativa coerente e deduzir a intenção dos atos praticados pelo ex-presidente”, diz Reale. “Há achados contudentes, mas também faltam algumas peças. Devemos aguardar o término das investigações, que ainda estão progredindo.”

Mauro Cid foi coagido a delatar 

Para que uma delação premiada seja válida, é imperativo que ela seja espontânea. O senador Flávio Bolsonaro afirmou, ainda em setembro de 2023, que a colaboração premiada do tenente-coronel Mauro Cid, que este ano embasou a Operação Tempus Veritatis da Polícia Federal, foi feita sob coação. “Ele está falando coisas num ambiente de semitortura: preso injustamente, separado da esposa, das filhas, do pai. Uma pessoa nesse estágio pode falar o que tem e, o que eu acho que é o caso, até o que não tem”, disse Flávio.

A alegação tem peso político, num momento em que os acordos de leniência das operações Lava Jato e Greenfield estão sob ataque do STF, justamente com a tese de terem sido assinadas sob ameaça. O ministro Dias Toffoli está à frente dessa investida. Valendo-se das mensagens da “Vaza Jato” , ele não apontou até hoje instâncias concretas de coação, mas levantou suspeitas genéricas a respeito do processo de negociação dos acordos firmados pelas empresas, passando por cima do fato de que todos foram elaborados com a participação de alguns dos advogados mais caros e renomados do país.

Para que o STF se visse constrangido a invalidar a delação de Mauro Cid, a defesa de Jair Bolsonaro teria de dispor, no mínimo, de ferramenta semelhante às mensagens hackeadas da “Vaza Jato”. Não há nada desse tipo no horizonte.

Alexandre de Moraes é suspeito para atuar no caso

A equipe de defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro entrou com dois recursos no Supremo Tribunal Federal pedindo o afastamento do ministro Alexandre de Moares da relatoria do inquérito que apura a realização de supostos crimes contra o Estado Democrático de Direito e golpe de Estado. A justificativa é que Moraes seria parte interessada no processo e não poderia ser considerado imparcial.

Foi Moraes quem autorizou a operação Tempus Veritatis da Polícia Federal, que incluiu 33 mandados de busca e apreensão, quatro mandados de prisão preventiva e 48 medidas cautelares. Como relator, cabe a ele organizar as provas e os depoimentos, autorizar medidas cautelares (como prisões) e dar o primeiro parecer. Mas Moraes também aparece como um dos alvos dos planos dos acusados. Tratado pelo codinome “professora”, Moraes tinha os seu deslocamentos monitorados e poderia ser preso no caso de um golpe de Estado.

Há dez dias, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, rejeitou o pedido da defesa de Bolsonaro. “De acordo com a jurisprudência desta Corte, a parte arguente deve demonstrar, de forma clara, objetiva e específica, o interesse direto no feito por parte do ministro alegadamente impedido. Para essa finalidade, não são suficientes as alegações genéricas e subjetivas, destituídas de embasamento jurídico”, decidiu o ministro. Os advogados pedem agora que a questão seja apreciada pelo plenário da corte.

Segundo a advogada constitucionalista Vera Chemin, a descoberta das menções a Alexandre de Moraes durante o inquérito deveria fazer com que ele se afastasse do caso, justamente para evitar alegações de parcialidade. “O caso ainda está na fase pré-processual, com os inquéritos em andamento. Então, Moraes faria bem em se distanciar e direcioná-los para outro ministro, uma vez que estaria acumulando os papéis de acusador, juiz e ‘vítima’“, afirma ela.

A defesa está sendo cerceada

Convocado a prestar depoimento na Polícia Federal no dia 22 de fevereiro, Jair Bolsonaro pediu que o procedimento fosse adiado, até que ele tivesse acesso à integra da delação de Mauro Cid, com todos os elementos de corroboração, como mensagens de celular, apresentados por ele. Alexandre de Moraes negou o pedido. É provável que o episódio seja mencionado no futuro pela defesa do ex-presidente como cerceamento de defesa – o que poderia acarretar até mesmo anulação do processo. Como observou o próprio Moraes, contudo, existe uma jurisprudência já bastante sedimentada sobre essa questão: “Antes do recebimento da denúncia, não configura cerceamento de defesa a negativa de acesso a termos da colaboração premiada referente a investigações em curso”. Ou seja, caso Jair Bolsonaro venha a ser denunciado, tornando-se réu de uma ação penal, essa linha de argumentação não deve surtir nenhum efeito.

A PF está promovendo “pescarias probatórias” 

O artifício da pescaria probatória –  ou fishing expedition, na expressão original em inglês – consiste em autorizar deligências policiais sem objetivo claro, na esperança de que algum material relevante para a investigação seja encontrado. A defesa de Jair Bolsonaro alega que a busca e apreensão direcionada a seu filho Carlos (o 02) em 29 de janeiro serviu, na verdade, para levantar provas contra o ex-presidente. A invalidação desse material deve ser pleiteada. 

Para que a tese prevaleça, contudo, será preciso demonstrar que as provas resultaram, de fato, de uma ação policial abusiva. Se isso não acontecer, pode se configurar um caso de “encontro fortuito de provas”, que não é ilegal. Isso é o que diz a PF: que jamais desencadeou uma operação com o intuito de atingir o ex-presidente e que todo o material que aponta para ele surgiu da investigação de fatos bem delimitados.

É preciso anistiar os pobres coitados

Ação política e estratégia jurídica unem-se nesta hipótese.

No ato na avenida Paulista, no dia 25 de fevereiro, Bolsonaro pediu perdão aos condenados pelo 8 de Janeiro. “O que eu busco é a pacificação, é passar uma borracha no passado. É buscar maneira de nós vivermos em paz. É não continuarmos sobressaltados. É por parte do Parlamento brasileiro (…) uma anistia para aqueles pobres coitados que estão presos em Brasília. Nós não queremos mais que seus filhos sejam órfãos de pais vivos. A conciliação. Nós já anistiamos no passado quem fez barbaridades no Brasil. Agora nós pedimos a todos 513 deputados, 81 senadores, um projeto de anistia para seja feita justiça em nosso Brasil”, disse o ex-presidente.

Um projeto de lei de anistia teria de ser aprovado no Congresso por maioria simples. Em fevereiro, o senador Hamilton Mourão, do Republicanos, apresentou o PL 5064/2023, que prevê anistia aos envolvidos na invasão dos Três Poderes. O texto está na Comissão de Defesa da Democracia do Senado e aguarda um relatório do petista Humberto Costa. A proposta fala em perdoar os que “tenham sido ou venham a ser acusados ou condenados” por crimes definidos nos artigos 359-L (tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito) e 359-M (tentativa de golpe de Estado).

O trecho “venham a ser acusados ou condenados” parece ter sido feito sob medida para proteger Bolsonaro de uma eventual condenação , a qual poderia ocorrer após a aprovação da lei. Trata-se de uma artimanha que nunca foi tentada. “A princípio, uma lei de anistia produz efeitos após a condenação da pessoa. Nunca houve um caso em que essa lei viesse a perdoar uma pessoa condenada após a sua promulgação”, diz a constitucionalista Vera Chemin.

Mas o projeto de lei teria de subir uma longa ladeira, com o risco de descer tudo ao final. Caso seja aprovado no Congresso por maioria simples — o que parece ser inviável —, o projeto teria de ir para sanção presidencial. E a chance de Lula sancionar algo com esse teor é zero. Desde o dia de sua posse, em 1º de janeiro de 2023, a claque petista grita as palavras: “Sem anistia”. O Congresso, após a negação presidencial, poderia anular o veto com maioria absoluta, 50% mais um. Mesmo assim, haveria uma elevada possibilidade de algum partido levar o caso para o Supremo Tribunal Federal e a Corte considerar a lei inconstitucional. Nesta semana, o ministro do STF Gilmar Mendes deu entrevistas dizendo que a proposta de anistia “não faz o menor sentido”. Disse Gilmar: “Estamos falando da ameaça mais grave à democracia em todos esses anos pós-ditadura”.

*****

Enquanto a defesa de Jair Bolsonaro prepara o seu arsenal, a Polícia Federal trabalha do periciamento de todo o material coletado na Tempus Veritatis, que aconteceu em 8 de fevereiro. Até que essa tarefa seja concluída, nenhuma nova ação deve ser desencadeada. Mas é provável que depois disso haja novas operações, segundo admitiram investigadores a Crusoé. Inclusive mirando diretamente o próprio Bolsonaro, pela primeira vez.

Desde a manifestação de 25 de fevereiro em São Paulo, outro ponto em vem sendo monitorado pelos agentes: o eventual contato entre Jair Bolsonaro e investigados como Valdemar Costa Neto, presidente do PL. Essa comunicação foi proibida pelo STF. Qualquer indício de que a determinação foi desrespeitada será levado imediatamente ao ministro Alexandre de Moraes — e abriria margem até mesmo para uma ordem de prisão preventiva.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Parabéns pela explicação clara e elucidativa. Quanto ao "país da impunidade", mencionado em um comentário acima, é pura verdade. A começar pela "absolvição" do Sr LULA. Realmente vergonhoso.

  2. É desesperador ver a proposta de anistia futura, com as justificativas de já houve ampla anistia no passado. Esse é o país da impunidade, o que é bem retratado nos filmes americanos

    1. Esquecem que neste país ladrões são "descondenados" algo inusitado em qualquer país sério ... é a ignorância ou a hipocrisia nacional? Ambas ...

  3. Infelizmente com os poderes claramente acolitados para achacar "manés" com a tal suprema corte a violar a remendada 169 vezes CF de 1988 em favor das "zelitis" hoje ridícula letra morta o destino do país é a ditadura escancarada (de fato já existe) e o de Bolsonaro por sua omissão e covardia em usar a institucional proteção do Art 142 nas várias vezes que foi violentado bem antes das eleições seu destino é a prisão ou o exílio .. sob sangue quem sobreviver chorará !!! No censor please ...

  4. Parabéns ao trio por mais um excelente texto!! retrato atual e fiel desse país caótico e esquizofrênico "Lulogilmolirobolsonarista"!!

Mais notícias
Assine agora
TOPO