Foto: Adriano Machado/CrusoéLira e Lula: a caminho de uma composição

Faroeste caboclo

Por que a tensão entre os Poderes criada pelo governo Bolsonaro não vai se extinguir de uma hora para outra no Brasil
23.12.22

A penúltima semana de 2022 começou com a perspectiva de uma crise entre poderes – a primeira do governo Lula, que nem sequer tomou posse.

A atmosfera ficou tensa na noite de domingo, 18, quando o ministro Gilmar Mendes, do STF, acolheu um pedido da Rede Sustentabilidade para que recursos do Orçamento de 2023 fossem reservados ao pagamento de um Bolsa Família (Auxílio Brasil) de R$ 600,00. Mendes decidiu que os valores liberados pela PEC dos Precatórios – aquela, que autorizou o governo a não quitar na íntegra, durante alguns anos, as dívidas judiciais da União – deveriam ser destinados a essa finalidade. Se ainda faltasse dinheiro, o Planalto estaria autorizado a abrir créditos extraordinários para garantir a entrega do benefício assistencial.

A notícia era ótima para Lula e o PT, que vinham lutando havia mais de um mês, sem sucesso, para aprovar a PEC da Gastança e assim poder cumprir as principais promessas da campanha eleitoral. Com a grana do Bolsa Família assegurada, o partido ficava menos dependente da boa vontade do Congresso.

A temperatura subiu de vez na segunda-feira, 19, quando o STF concluiu o julgamento do orçamento secreto. O voto decisivo foi de Ricardo Lewandowski, que é amigo de Lula. Por 6 a 5, a corte considerou inconstitucional o uso de emendas do relator para irrigar com dinheiro público os feudos eleitorais dos parlamentares. Isso, apesar de as presidências da Câmara e do Senado terem finalizado, dias antes, um projeto de resolução que prometia sanar os principais problemas do orçamento secreto: a falta de transparência e a falta de critérios para a distribuição dos recursos.

Mais uma vez, a notícia era boa para o governo eleito, que recobrava o controle sobre os R$ 19,7 bilhões direcionados para o agora defunto orçamento secreto.

Satisfação de uns, ressentimento de outros. As duas decisões minaram a força  do presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL). A primeira, reduziu seu poder de barganha diante de Lula. A segunda, atingiu em cheio o seu poder de fazer ou desfazer maiorias no plenário, manejando os bilhões do orçamento secreto. De repente, até mesmo a reeleição do deputado para a presidência da Câmara, em fevereiro de 2023, já não parecia certa.

A primeira reação dos aliados de Lira foi ver nos acontecimentos uma jogada combinada entre Lula e o STF. Segundo apurou Crusoé, o tribunal fez chegar aos deputados que Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski não haviam discutido entre si as respectivas decisões. Mendes teria até mesmo ficado surpreso com o posicionamento de Lewandowski  no julgamento do orçamento secreto. Mas a desconfiança do Centrão não se desfez.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéO ministro Alexandre de Moraes: um STF político como nunca antes
Estavam dadas as condições para um choque do governo eleito com a Câmara. Ao mesmo tempo, parlamentares ligados ao bolsonarismo retomaram suas críticas ao STF, acusando o tribunal de interferir em questões que deveriam ser da alçada do Legislativo e do Executivo. Ações do ministro Alexandre de Moraes durante as eleições, restringindo a liberdade de expressão inclusive de parlamentares, voltaram a ser lembradas. “O que a gente tem visto no país é muito grave”, disse o senador Carlos Portinho ao programa Meio-Dia em Brasília, do Antagonista, nesta terça-feira, 20. “As prerrogativas e funções constitucionais do parlamento vêm sendo superadas pelo Judiciário. O direito de fala do parlamentar não vem sendo respeitado. A gente tem visto censura, há um clima até de terror, de medo, o parlamentar não sabe mais o que pode falar da tribuna.”

A crise foi evitada porque o PT concluiu que não seria boa ideia abandonar as tratativas sobre a PEC da Gastança. O propósito de manter as negociações foi anunciado na própria segunda-feira por Fernando Haddad, futuro ministro da Fazenda.

Depois de mais dois dias de discussões, na quarta-feira à noite, a PEC foi aprovada. O governo eleito disporá de R$ 145 bilhões fora do teto de gastos, mas só em 2023, e não por dois anos, como queria. O Congresso, por sua vez, não perdeu acesso aos R$ 19,7 bilhões anteriormente direcionados ao orçamento secreto. Metade desse valor vai engordar as emendas individuais, a que todo parlamentar tem direito. A outra metade será distribuída entre ministérios, mas o Congresso poderá influir na sua utilização por meio de outros tipos de emenda – as de bancada e as de comissão.

O fato de se ter contornado uma crise neste momento não significa que a paz eterna vai reinar entre os três poderes. Os americanos, no século 18, criaram um sistema de “pesos e contrapesos” porque sabiam que Legislativo, Executivo e Judiciário são sempre tentados a invadir o espaço um do outro. A tensão, e não a harmonia, é o estado natural no relacionamento entre eles. Nos últimos quatro anos, no entanto, Jair Bolsonaro exacerbou essa tendência, transformando os tribunais superiores – STF e depois TSE – em inimigos políticos, enquanto cedia aos interesses e vontades do Congresso como nenhum presidente antes dele. Isso despertou paixões que não vão se extinguir de uma hora para outra.

“O Congresso vem se empoderando há cerca de uma década”, diz o cientista político Leonardo Avritzer. “Mas seu controle da agenda política e do orçamento atingiu o ápice no governo Bolsonaro.”

Depois de experimentarem esse momento de ouro, não se deve imaginar que senadores e deputados vão se retrair por muito tempo. Eles tentarão recobrar o terreno perdido com a derrubada do orçamento secreto. Duas oportunidades para isso delas já estão no calendário estabelecido pela PEC da Gastança: em 2023, o governo terá de apresentar e aprovar um novo arcabouço fiscal, além de garantir recursos para os programas sociais de 2024.

Certas diferenças de estilo entre Lula e Bolsonaro também devem ser levadas em conta. Como observa Avritzer, o atual presidente não se esforçou para impor uma agenda ao Congresso. Esse é um fato atestado por números. Um levantamento realizado pela Escola de Direito da FGV mostra que Bolsonaro teve baixíssima capacidade de aprovar leis de autoria da Presidência no Congresso. Até junho deste ano, sua taxa de sucesso foi de 39,7% – contra 56,7% de Fernando Henrique Cardoso, 62,2% de Lula e 59,7% de Dilma Rousseff (quem diria), sempre nos seus primeiros mandatos.

Também foi baixa a sua “taxa de dominância”, ou seja, a porcentagem de projetos de sua iniciativa entre aqueles aprovados pelo Congresso: 28,3%, contra 60% de FHC, 62,1% de Lula e 35,1% de Dilma. Sem aptidão ou apetite para fazer avançar uma pauta legislativa, Bolsonaro preferiu governar por decretos e polêmicas. Editou mais de 1400 dos primeiros e produziu as segundas em volume industrial.

Lula e o PT, ao contrário, devem fazer todo o possível – e talvez o impossível – para emplacar seus projetos. A luta será bastante encarniçada, tendo em vista que o bloco de direita e de centro direita eleito para o Congresso é consideravelmente maior que o bloco de esquerda. Lula está distribuindo cargos para partidos como MDB e PSD, mas não poderá contar com essas bancadas na íntegra. Cada votação importante vai abrir uma janela para que o Congresso tente arrancar mais um naco de poder do governo.

O esforço para minar a reputação do STF deverá ser quase que exclusivamente dos bolsonaristas, a partir do ano que vem. Alguns políticos da direita liberal podem engrossar as críticas. “Tenho achado absurdo o que STF está fazendo”, diz o deputado federal Marcel van Hatten (Novo-RS). “Há uma diminuição enorme do poder do parlamento em decorrência da extrapolação dos limites do STF.” O Centrão raiz jamais comprou essa briga e não deve fazê-lo agora. O PT e a esquerda se reconciliaram com a corte depois da anulação dos processos da Lava Jato contra Lula. Mas não é o caso de subestimar o apelo do assunto entre uma fatia considerável da população. Além disso, o combustível para a paixão anti-Supremo é quase inesgotável.

“O escopo de atuação que a Constituição de 88 deu ao STF é tão grande que é  quase inevitável que ele seja visto como uma corte ativista”, diz o diretor da Escola de Direito da FGV, Oscar Vilhena Vieira. “Ele é chamado a se manifestar continuamente no timing da política.” É bom lembrar que, embora os partidos políticos reclamem com frequência das intervenções do STF, muitas vezes são eles mesmos que acionam o tribunal. Tanto a ação a respeito do Bolsa Família julgada por Gilmar Mendes quanto o processo sobre a inconstitucionalidade do orçamento secreto tinham partidos como autores.

Algumas das críticas ao STF, no entanto, se devem aos seus próprios erros. É fato que os inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos, sob o pretexto de proteger a democracia, resvalaram muitas vezes na censura e no autoritarismo. Também é fato que o excesso de decisões individuais enfraquece a legitimidade do tribunal. “O apetite monocrático é muito grande e há um déficit de colegialidade”, diz Vieira. “O Supremo parece esquecer que tem mais força quando age coletivamente.” Na segunda-feira, 19, durante a última sessão do ano, a presidente do STF, Rosa Weber, apresentou os números do tribunal. Segundo ela, o STF proferiu 87.983 decisões ao longo de 2022, das quais 75.351 monocráticas (85,64%) e apenas 12.632 colegiadas (14,36%).

Nos últimos quatro anos, o Executivo partiu para o confronto com a cúpula do Judiciário, enquanto se retraía diante do Legislativo. O Legislativo desfrutou de uma força inédita, mas sofreu um revés de última hora. O Judiciário assumiu o papel de defensor da democracia, mas às vezes errou na dose e se tornou vilão para muitos brasileiros. A mudança de equilíbrio entre os Poderes é uma  herança do governo Bolsonaro com que o Brasil ainda vai lidar por um bom tempo.

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