Divulgação/Renato Parada"O que mais me preocupa são as crianças, que ficam horas nas redes sociais, gerando valor econômico para as big techs"

A praça digital não é nossa

O jornalista Eugênio Bucci critica os proprietários das redes sociais, como Elon Musk, que definem ao bel-prazer as regras do debate público e lucram com o conteúdo publicado voluntariamente pelos usuários
23.12.22

No ano passado, o jornalista Eugênio Bucci, de 64 anos, lançou o livro A superindústria do imaginário, em que critica a forma como as redes sociais, como Facebook, Twitter e Instagram, apropriam-se de conteúdos produzidos voluntariamente por bilhões de indivíduos e, em seguida, usam os dados inseridos por eles para impulsionar o próprio negócio e lucrar. “O que eles publicam, seja a foto de um gato ou de um prato de comida, tem valor econômico. Mas seus autores não recebem um tostão por isso. Portanto, essa atividade só pode ser descrita como um trabalho escravo”, diz Bucci. Ele também se preocupa com o fato de empresários como Elon Musk determinarem as regras do debate público, bloqueando contas de jornalistas e derrubando plataformas inteiras, e sugere uma maior regulação para evitar monopólios e oligopólios.

Bucci também foi presidente da Radiobrás, hoje parte da Empresa Brasil de Comunicação, durante o primeiro mandato de Lula. Nessa posição, discutiu diversas vezes com políticos que queriam ressaltar somente os fatos positivos do governo. A experiência rendeu o livro Em Brasília, 19 horas. Apesar de ter sofrido pressão para fazer um jornalismo chapa-branca no mandato petista, Bucci acha que a gestão de Jair Bolsonaro tem ido mais longe ao forçar as emissoras públicas para fazer propaganda do governo. “O que aconteceu no governo Bolsonaro é incomparável. Há dezenas de denúncias de censura dentro da emissora. Além disso, a gestão da EBC não distingue mais as notícias de atos oficiais do governo federal de reportagens em geral”, diz Bucci. Professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP, ele conversou com a revista pelo telefone.

 

Na semana passada, o empresário Elon Musk, que comprou o Twitter, suspendeu contas de jornalistas que o estavam criticando. Depois, como o cancelamento virou assunto na plataforma de conversas em áudio Twitter Spaces, toda essa rede saiu do ar. Musk pode fazer isso, tendo em vista que essas plataformas são o espaço em que as pessoas debatem suas ideias?
O Twitter e outras redes sociais são frequentemente associados a uma praça pública, um lugar onde as pessoas discutem livremente. Essa metáfora ganhou mais visibilidade após declarações de outro empresário do ramo, Mark Zuckerberg, o fundador do Facebook. Mas essa comparação só pode ser feita pela metade. Sem dúvida alguma, esses aplicativos, plataformas e redes sociais cumprem uma função que podemos chamar de esfera pública ou de espaço público. São âmbitos comuns de acesso relativamente simples, que a princípio admitem qualquer pessoa do público. Nesses espaços, as pessoas podem tratar dos assuntos de preferência, inclusive daqueles de interesse comum, sem censura. Contudo, essa ideia não se aplica totalmente. Isso porque as praças públicas do Twitter ou do Facebook têm um dono particular. Além disso, as regras impostas por esses entes privados disciplinam a dimensão pública desse mesmo espaço. Em função disso, os temas públicos ficam sujeitos a regras privadas. Ou seja, quando pensamos que essas redes cumprem a função de uma arena pública, precisamos lembrar que o controle delas não é público.

Musk pode fazer o que quiser?
Existe amparo para que um dono de plataforma estabeleça as suas próprias regras, e não há nada que se possa fazer contra isso, a menos que se quebre essa propriedade ou o controle que o dono exerce sobre ela. Mas nenhuma dessas possibilidades está no horizonte. Quando toma decisões polêmicas, Musk faz algo que não é desejável, mas que ao menos ajuda a desmascarar essa crença tácita de que o Twitter ou o Facebook são praças públicas. Na verdade, são grandes quermesses particulares.

Existem maneiras de tornar esses espaços mais parecidos com uma praça pública?
Essa questão não é nova. Já apareceu ao longo da história. Então, podemos aprender com o passado. O que estamos chamando de arena pública remonta à Ágora, na Grécia Antiga. Em outras sociedades também havia espaços em que os seus membros, cidadãos ou patrícios se reuniam para tomar decisões em comum. Na modernidade, essa praça pública deixou de ser um encontro físico, presencial. Há muito tempo, esse debate passou a ser mediado. Na modernidade, a imprensa gráfica e os meios de comunicação de massa, como o rádio, passaram a atingir multidões quase que simultaneamente. Então, no século XX, várias sociedades buscaram maneiras de impedir um controle do debate público por parte de alguns empresários. As soluções encontradas instituíram algum nível de regulação dos mercados. Na Europa, a resposta foi o fortalecimento de emissoras públicas, que ainda são muito importantes na Alemanha, no Reino Unido, na Suíça e em vários países. Nos Estados Unidos, a ênfase foi na regulação dos mercados. Os americanos atuaram principalmente com a mentalidade antitruste, para impedir a concentração de propriedades, os monopólios e oligopólios. Com essas medidas, foi possível proteger a diversidade de vozes e impedir que um único grupo controlasse a discussão. Acontece que a escala do problema agora é incomparavelmente maior. As big techs estabelecem as regras para praças infinitamente maiores, que extrapolam as fronteiras nacionais. Os monopólios se tornaram globais. O Facebook tem quase 2 bilhões de usuários ativos diários. Isso é muito mais que a população de muitos países juntos. Antes, os jornais e canais de televisão não alcançavam públicos tão numerosos. Portanto, é preciso questionar como fica a liberdade de expressão e o acesso à informação em um mundo onde alguns controladores de grupos econômicos exercem tamanha ascendência sobre o debate público. A democracia, em sua história, seguiu o caminho da regulação de mercado e o da proteção da diversidade. Tudo isso foi feito respeitando a liberdade de expressão e o acesso às informações verídicas. Temos pistas na história, portanto, para lidar com esse problema novo.

Divulgação/Renato ParadaDivulgação/Renato Parada“Se o Facebook me pagasse para escrever dez linhas na plataforma deles, eu talvez pensaria na proposta”
Como seria essa regulação das redes sociais? 
Acho que esse debate deveria se concentrar na questão econômica. Nos Estados Unidos, a senadora democrata Elizabeth Warren propôs uma legislação para acabar com os monopólios das redes sociais. Sua proposta é atualizar uma lei que já existe, e que foi pensada para para os meios de comunicação tradicionais. Nos Estados Unidos, a Comissão Federal de Comunicação (FCC, na sigla em inglês) pode entender que um único dono está combinando várias companhias, como rádio, televisão e jornais, de forma a ter uma presença monopolista no mercado. Nesse caso, a comissão pode pedir para que ele se desfaça de uma delas. Acho que a solução é mais pela via econômica, e menos pela análise do conteúdo. Quando se fala em bloquear discurso de ódio, por exemplo, esse é um tema delicado. O que é, afinal, um discurso de ódio? Também não se pode achar que uma autoridade possa dizer o que é verdade e o que é mentira. Aí tudo fica mais complicado. 

Caso essa discussão econômica evolua, seria o caso de separar Facebook, WhatsApp e Instagram?
Sim. Outro ponto que deve ser abordado é o uso de dados. Não devemos permitir que o WhatsApp compartilhe dados de usuários com o Facebook, sem informar as pessoas sobre isso. Ou que o Youtube use dados que os usuários inseriram no Google. Tudo isso deve ser declarado, com transparência. Esse debate está ocorrendo principalmente na União Europeia.

O PT fala muito de regulação da mídia. O que os petistas querem dizer com isso?
Essa é uma pergunta difícil de ser respondida de forma categórica, porque existem setores diferentes no Partido dos Trabalhadores. Muita gente, quando fala de regulação, está se referindo ao que estou dizendo. A regulação da comunicação é um déficit da democracia brasileira. O Reino Unido, a França e o Canadá já fizeram isso. É algo que em nada ameaça a liberdade. Pelo contrário, a censura é menos possível onde existe a regulação. Um ambiente com normas favorece a concorrência, a livre iniciativa, a valorização do direito à informação e da liberdade de expressão. Mas alguns petistas também podem pensar na regulamentação como um atalho para controlar os noticiários. Eu não descartaria que na cabeça de alguns exista uma fantasia autoritária, disfarçada com um termo vago, como o da regulamentação da mídia. Alguns membros da esquerda pensam dessa forma, assim como alguns integrantes da direita também nutrem essas fantasias autoritárias. Esse negócio de chamar a Globo de Globolixo mostra essa vontade. Nessa resposta, quero deixar uma coisa muita clara: eu sou a favor da regulação dos meios de comunicação no Brasil. Muita gente do PT tem uma compreensão atualizada disso. Pode ter gente no PT que tenha uma compreensão anacrônica ou uma fantasia autoritária? Pode ter. Mas, no geral, é uma compreensão atual, e temos de tocar essa agenda adiante.  

O sr. é filiado ao PT?
Fui filiado ao partido na década de 1980. Fundei núcleos, criei diretórios. Em 1986, eles fizeram uma exigência: as pessoas deveriam fazer um recredenciamento ou deixariam de ser filiadas. Eu então optei por não fazer. Nunca mais exerci algum direito ou dever de filiado. Muito tempo depois, alguém disse que a filiação continuava nos registros do partido. Na prática, eu não sou mais, mas pode ser que eu ainda esteja no arquivo. 

Aí fica que nem padre ou embaixador. Uma vez que tenha ocupado alguma dessas posições, fica para sempre.
No próximo ano, vou resolver isso. 

Jornalistas erram ao publicar notícias nas redes sociais?
Em certo sentido, jornalistas não devem publicar uma única linha nas redes sociais. Eles não devem trabalhar de graça para esses conglomerados, que amealham fortunas a partir disso. Não apenas os jornalistas, mas todas as pessoas que postam conteúdo nas redes sociais estão trabalhando, porque elas estão fornecendo elementos que essas empresas usam para atrair mais leitores, mais usuários. O que eles publicam, seja a foto de um gato ou de um prato de comida, tem valor econômico. Mas seus autores não recebem um tostão por isso. Portanto, essa atividade só pode ser descrita como um trabalho escravo. Nessa perspectiva, o jornalista que é profissional da apuração, da fiscalização, da reportagem, da mediação das opiniões, da curadoria dos pontos de vista, desenvolve um trabalho que tem também valor econômico. Sendo profissional, ele recebe pelo que ele faz, ao ganhar o salário pago pelo seu patrão. Por que então ele deveria fazer isso de graça nas plataformas sociais? Não. Um jornalista nunca deveria postar nada de graça. Por outro lado, há motivos que podem levar um jornalista, um grupo ou uma ONG a usar as plataformas sociais.

Quais motivos?
Um jornalista pode publicar nas redes sociais se isso fizer sentido dentro de uma estratégia qualquer. O uso inteligente das plataformas, nesse caso, pode contribuir para o fortalecimento do projeto, do negócio, do partido, da ONG. Quando não existe essa estratégia maior, entendo que seria importante pressionar as plataformas para que elas remunerem esse tipo de trabalho. Vários países estão impulsionando iniciativas para que as empresas de tecnologia paguem os jornais, as revistas, as emissoras, as redações, pelo uso que elas fazem do conteúdo produzido. Há muito trabalho investido nessas mercadorias virtuais, que são roubadas pelas plataformas digitais como se essas fossem navios piratas. É uma relação desleal, que não deveria ter espaço em uma sociedade democrática. Se o Facebook me pagasse para escrever dez linhas na plataforma deles, eu talvez pensaria na proposta. Do jeito que é hoje, eu não me subordino a ser um escravizado desse negócio trilionário. Há uma assimetria insuportável. O fundamental para mim é não termos uma ação ingênua, achando que essas empresas nos dão de presente uma funcionalidade que nos ajuda a falar com as pessoas, sem enxergar a profunda exploração que ocorre.

Divulgação/Renato ParadaDivulgação/Renato Parada“Bolsonaro criou um palanque permanente”
Com qual público essa exploração é mais perversa?
O que mais me preocupa são as crianças, que ficam horas nas redes sociais, gerando valor econômico para as big techs. A partir do uso que os pequenos fazem nesses aparelhos eletrônicos, essas plataformas extraem dados, que são comercializados depois. Essas empresas turbinam fórmulas e ferramentas para obter essas informações dos usuários. Com isso, elevam o preço dos dados que obtêm e vendem mais tarde. Isso levanta uma questão ética, que deve ser observada. Há um desequilíbrio de poder muito grande. Se eu quiser saber quanto a Alphabet, do Google, ou a Meta, do Facebook, faturaram no Brasil no ano passado, sei que terei dificuldade para saber. Nem isso as plataformas divulgam. Mas elas deveriam abrir esses números e muito mais. Como funciona o algoritmo que elas usam para promover alguns conteúdos e não outros? Também não sabemos. Por outro lado, os algoritmos sabem tudo da nossa vida. Isso é uma discrepância intolerável.

Há uma semana, deputados aproveitaram um projeto que busca mudar a Lei das Estatais para incluir um jabuti que aumenta o limite para os gastos com publicidade e patrocínio em empresas públicas de 0,5% para 2% da receita bruta operacional. Como o sr. vê isso?
O uso de dinheiro público em publicidade pelo governo e pelas estatais é escandalosamente alto no Brasil. Essa é uma tendência que já deveria ter sido contida e revertida. O dinheiro público é canalizado para o mercado publicitário com uma selvageria sem paralelo em outros países. Essa medida da Câmara, em vez de reverter esse problema, pode agravá-lo. Se somarmos os gastos publicitários dos estados, dos municípios, da União e das estatais, encontraremos provavelmente o maior anunciante do mercado publicitário nacional. É uma coisa espantosa. Pequenos jornais, redações de rádio e emissoras de televisão regionais têm uma dependência do dinheiro público muito grande. Isso cria uma imprensa que precisa ser simpática demais aos diversos governos. Então, a possibilidade de um direcionamento da linha editorial a partir do poder é muito grande. Não podemos ter tantos anúncios pagos com dinheiro público. Isso distorce a democracia e favorece laços de clientelismo. Não é republicano.

Esse uso abusivo do dinheiro público em publicidade também se deu no governo de Jair Bolsonaro?
O atual presidente tinha prometido que privatizaria a Empresa Brasil de Comunicação, a EBC. Mas ele não apenas não fez isso, como agravou o problema. Ele transformou a EBC em uma máquina de propaganda do governo, sem nenhum disfarce. Teve até transmissão de jogos de futebol para fazer promoção do presidente.

O sr. foi diretor da Radiobrás durante o governo de Lula. A Radiobrás é parte da EBC. Há diferenças nas maneiras com que Lula e Bolsonaro lidaram com as empresas públicas de comunicação?
Vejo diferenças importantes. No meu livro Em Brasília, 19 horas, contei vários atritos que aconteceram com o governo federal. Nossa cobertura da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, a Minustah, feita pelo Exército brasileiro, foi muito questionada dentro do Executivo. Eles reclamaram que não estávamos mostrando os pontos positivos. Mesmo assim, tudo foi ao ar. A gente precisava enfrentar muita pressão para fazer um jornalismo minimamente objetivo dentro dos marcos legais. Foi uma experiência quixotesca, quase de um idealismo juvenil. Mas, em outros países, esse jornalismo objetivo e de qualidade é uma realidade. No Reino Unido, um exemplo é a BBC. Nos Estados Unidos, há emissoras de excelência, como a Public BroadCasting Sevice, PBS, e a rádio Nation Public Radio, NPR. No Brasil, um exemplo é o programa Roda Viva, na TV Cultura, que reúne jornalistas de veículos diferentes em um debate aberto, com muita contestação. Então, acredito que as emissoras públicas, na democracia, podem e devem cumprir um papel informativo de alto nível. Foi o que tentei fazer como presidente da Radiobrás. Havia uma tensão, claro, e contei isso no meu livro. Agora, o que aconteceu no governo Bolsonaro é incomparável. Há dezenas de denúncias de censura dentro da emissora. Além disso, a gestão da EBC não distingue mais as notícias de atos oficiais do governo federal de reportagens em geral. Antes, havia duas emissoras para os dois assuntos. Uma transmitia os atos oficiais. A outra publicava informações menos focadas no governo. Ao juntar as duas coisas, Bolsonaro criou um palanque permanente, o que é um desrespeito com as pessoas que trabalham lá.

Mas Lula não cometeu o mesmo erro?
Não acredito, de forma alguma, que o que ocorreu no governo petista seja uma conduta exemplar. O que vi ficou muito aquém do que deveria acontecer em uma democracia com espírito republicano. Mas aquilo estava nos marcos de uma democracia em construção. O que aconteceu no governo Bolsonaro sai do campo da democracia e da observância de padrões republicanos. Sua conduta foi muito pior que a de Lula. Não é verdade que o radicalismo de esquerda seja equivalente ao de direita. O radicalismo dos governos de esquerda manteve um padrão de legalidade, de observância dos fatos, de pluralidade. O que aconteceu no governo Bolsonaro foi um acinte.

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  1. Entrevistador (preâmbulo) e entrevistado propagam desinformações, o primeiro ignora o empenho de E Musk pela liberdade de expressão e não menciona que os jornalistas estavam publicando a localização de Musk, o 2' é um militante.

  2. Petista passando pano no governo do pt. Se soubesse que era petista nem teria lido a entrevista, já saberia o conteúdo. Tenho medo do que vem pela frente.

  3. Quando o Twitter bloqueava contas de direita antes da sua compra por Elon Musk não tinha problema e agora esse sujeito vem falar que Musk quer interferir na política. Me poupe!! Aos amigos, tudo. Aos inimigos, os rigores da lei.

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