AlexandreSoares Silva

Sou crítico ferrenho da esquerda, mas..

09.07.21

Vocês sabem que eu sou um duro crítico da esquerda. Mas, nessa questão específica, eles estão certos.

Que questão específica? Todas as questões específicas. Qualquer uma. Todas que existiram até agora.

Mas só essas. Fora todas as questões específicas que existem ou já existiram, sou um duro crítico da esquerda.

Vamos só aceitar mais essa questão específica, como aceitamos todas as outras, mas depois dessa seremos opositores duros. Ok? Combinado? Aceitamos apanhar até agora – e não foi tão ruim, foi? Mas daqui em diante a coisa muda de figura, podem anotar. Nos levantaremos do chão, e seremos duríssimos.

Aceitamos todas as exigências da esquerda até aqui porque todas nos pareceram razoabilíssimas, como as de dizer que mulher às vezes tem pênis, que racismo é estrutural, que não existe racismo contra brancos, que matemática é racista etc – quem seria contra isso? Mas essas novas exigências são um pouco absurdas demais.

Isso é o que escreve o linguista e professor da Universidade de Columbia John McWhorter na revista Atlantic de julho. McWhorter acha razoável ter que dizer “pessoa escravizada” no lugar de “escravo”, e acha “aventuroso e sensato” tratar uma pessoa pelo pronome “eles”.

Mas por algum motivo as novas exigências lhe parecem um pouco demais, pelo menos por enquanto. Acha ridículo não poder mais falar “gatilho“, por exemplo, e nem “vítima”, “sobrevivente” e “afroamericano”. Porque essas novas exigências, sim, essas são ridículas demais, passaram da conta, enquanto aquela de um mês e meio atrás de não poder dizer “escravo” era sensatíssima.

Acho ridículas essas novas exigências também, mas honestamente até quando vou achar isso? Ora, até que um número suficientemente grande de pessoas apareça exigindo que eu pare de falar “sobrevivente” e “vítima“. Daí, de repente, talvez em seis meses ou menos, ficarei convencido que é pra parar de falar “sobrevivente” e “vítima” mesmo, e defenderei tudo isso em artigos sensatos que começarão com as palavras “sou um duro crítico da esquerda, vocês me conhecem, mas neste ponto…

Às vezes variarei e escreverei assim: “Todos sabem que sou um ferrenho crítico da esquerda, mas, no que tange à questão do…”, e por aí vai.

Como faríamos diferente? Somos, por acaso, trogloditas?

Talvez vocês se lembrem que em 1635, durante as capitanias hereditárias, eu não era um defensor do casamento gay. Certamente, isso é verdade. Mas isso era só porque a ideia de casamento gay ainda não tinha ocorrido a ninguém. Assim que a ideia ocorreu pra umas cem pessoas, continuei contra, porque não sou maria-vai-com-as-outras pra aceitar uma ideia que só umas cem pessoas acreditam. Mas, quando milhões de pessoas no mundo inteiro começaram a berrar na minha cara que eu tinha que aceitar essa ideia, e até os meus cartões de crédito começaram a me mandar folhetos pra eu mudar de ideia, e a Coca Cola começou a me insultar (minha própria latinha de Coca Cola!), e o Uber também inclusive, aí tive a humildade de parar para reexaminar as minhas convicções – e escrevi um artigo duríssimo, ferrenhíssimo, afirmando as minhas novas convicções convictíssimas que sempre tive (e ninguém pode provar o contrário).

Queria poder dizer que estou sendo sarcástico, mas nesse ponto nem estou. Sobre o casamento gay comecei como todos nós, nem pensando no assunto. Quando ouvi as primeiras defesas no jornal, e na tevê, e em filmes de cinema, achei ridículo, como todos nós (não mintam). Mas o tempo foi passando, e hoje quando penso no assunto é pra encolher os ombros e pensar: “Ah, que diabos, deixa eles.

O fato é que todas as exigências da esquerda até o inicinho de julho de 2021 (digamos terça passada até a hora do almoço) foram razoáveis, mas as que eles estão começando a fazer agora na segunda semana de julho por enquanto estão me parecendo absurdíssimas e louquíssimas.

Mas me deem um tempo, que logo posso dizer o contrário. Como todo conservador de bom senso, estou aberto a mudar de ideia – e até, na maior parte do tempo, escancarado para mudar de ideia.

***

O futuro de pesadelo da linguagem é que cada palavra previamente inocente se torne politizada, e nesse processo perca qualquer matiz além do político; não apenas “diversidade“, “tolerância“, “família“, “mulher“, “patriarca“, “bicicleta” e “cantada“, mas todas as outras que por um milagre ainda consideramos apolíticas: “mãos“, “peruca“, “lactobacilos“, “com“, “de“, “mas“, “obrigado“, “tia“, “avó“, “tricô“, “plátano“, “amizade“, “sorriso“. E de “aadvark” a “zurzir“, tudo que teremos para escrever cartões de Natal ou letras de músicas ou mensagens do Dia dos Pais, ou até para gritarmos de dor quando quebrarmos o mindinho, será uma linguagem de panfleto.

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