Flávio Dino, destruidor de livros
As obras jurídicas censuradas pelo ministro do STF têm mesmo trechos torpes, mas é desmesurado qualificá-las como violações da dignidade humana
“Do conúbio entre indivíduos pertencentes a raças opostas, sai, na melhor das hipóteses, o albino. Imagine-se o pandemônio que nasceria do entrelaçamento de duas civilizações completamente diferentes. Tanto a reunião entre indivíduos de raças diversas como entre civilizações opostas é sempre monstruosa, os seus produtos não o podem ser menos.”
As três frases acima são inequivocamente racistas.
Os estereótipos mais grosseiros estão ausentes: nenhuma comparação de judeus com ratos ou de negros com macacos. No entanto, existe aqui uma clara apologia da pureza racial, esteio do racismo pseudocientífico que veio do chamado "darwinismo social” e desembocou no nazismo.
Raças não devem se entrelaçar, diz o autor (direi quem é adiante), e o mesmo vale para civilizações. Da mistura de raças e culturas, nascem albinos e monstros.
(Na verdade, a ausência de melanina que caracteriza o albinismo não tem nada a ver com miscigenação. É o oposto: trata-se de um problema genético causado pela endogamia.)
Nada encontro no artigo do qual extraí o excerto acima que sirva para atenuar ou relativizar a defesa das "raças puras". O texto trata de um tema que por muito tempo hipnotizou a intelectualidade brasileira: nosso “caráter nacional”.
O autor critica os brasileiros pelo “hábito de macaquear tudo quanto é estrangeiro” e em seguida afirma que a importação do “utilitarismo yankee" não casa bem com a “índole do povo brasileiro”. É nesse contexto que surge sua crítica ao conúbio das raças.
Caberia censurar esse artigo por causa das três frases transcritas acima?
Na quinta-feira, 31 de outubro, Flávio Dino, ministro do STF, mandou tirar de circulação quatro livros jurídicos que tinham trechos inequivocamente machistas e homofóbicos.
A julgar pelas passagens constantes na decisão do ministro, Luciano e Fernando Dalvi, autores das obras censuradas, carecem da elegância do autor misterioso com que abri a coluna de hoje.
Um dos livros afirma, por exemplo, que a "cultura maléfica do homossexualismo” valoriza a bunda em detrimento da vagina. E eu nunca tinha ouvido falar desse concurso de orifícios…
Também há uma passagem lamentável sobre o "mercado de mulheres” no Brasil: ao que parece, as "lindas e gostosas” são “de uso exclusivo dos jovens playboys”.
Em Curso Avançado de Direito do Consumidor, os dois juristas reprovam os compositores brasileiros que incentivam “um sentimento doentio de atração entre pessoas do mesmo sexo” e lamentam – vejam a ironia! – que as letras de música não sejam censuradas.
Isso tudo é muito crasso e muito torpe. Mas muitas coisas crassas e torpes ainda se encontram, para usar uma expressão de Dino, “albergadas sob o manto da liberdade de expressão”.
Essa liberdade não é absoluta, diz o ministro. É o óbvio: não existe liberdade absoluta.
A Constituição, no entanto, garante a livre expressão, sem censura, no artigo 5, e veda “toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística” no artigo 220. Como se justifica então que quatro livros jurídicos sejam impedidos de circular por ordem judicial?
Vamos recuar alguns passos antes de chegar às razões de Flávio Dino.
O enrosco começou na Universidade Estadual de Londrina (UEL) em 2015, quando alunos denunciaram a existência de livros – publicados em 2008 e 2009 – com conteúdo homofóbico na biblioteca. O Ministério Público entrou em campo.
O Tribunal Regional Federal da 4a Região negou o pedido para retirar as obras de circulação (a desembargadora Marga Inge Barth Tessler, relatora do processo, ganhou minha admiração por citar A Marca Humana, de Philip Roth, na sua argumentação).
O caso foi parar na mesa de Flávio Dino, que abraçou a tese dos votos vencidos no TRF-4: ao depreciar mulheres, gays e trans, os quatros livros "violam o postulado da dignidade da pessoa humana", que também é protegido pela Constituição.
Dino admite que os livros voltem a circular, desde que os trechos preconceituosos sejam suprimidos.
Aceitando-se esse princípio, a citação com que abri este texto também deveria ser banida de livrarias e bibliotecas. Se lá está dito que o resultado da união de “raças opostas” é sempre monstruosa, a dignidade de todos os filhos de uniões interraciais foi aviltada. Os albinos também tiveram seus direitos atacados.
É com certo temor que identifico o livro em que busquei a citação: não quero abrir caminho para seu banimento judicial.
Descontado aquele trecho horroroso, trata-se de uma excelente coletânea de ensaios: O Espírito e a Letra I – Estudos de Crítica Literária 1920-1947.
O autor é Sérgio Buarque de Holanda.
O trecho discutido aqui vem de Ariel, artigo publicado na Revista do Brasil em 1920, quando o futuro autor de Visão do Paraíso estava para completar 18 anos.
Essa produção adolescente não é, de forma alguma, representativa do pensamento do grande historiador. Para aqueles que estudam sua obra, porém, é importante saber que, 16 anos antes de Raízes do Brasil, Sérgio Buarque foi tocado pelo nefasto pensamento racial da época.
Contexto faz muita diferença, claro. Defender ideias de pureza étnica em 1920 é muito diferente de qualificar a homossexualidade como uma condição doentia em 2008.
No entanto, se escritos preconceituosos constituem mesmo violações da dignidade humana — no mesmo pé que a agressão de mulheres por maridos violentos e que o linchamento de travestis por gangues de brucutus —, então pouca importa quando, por quem ou em que circunstância um livro foi escrito: se contém preconceito, deve ser proibido.
E queimado, talvez? O aspecto mais perturbador da decisão de Flávio Dino é que ele aceita a recomendação do MP para que se destruam os exemplares dos quatro livros jurídicos ainda em circulação.
Até onde vai a determinação do ministro de erradicar de livrarias e bibliotecas o que julga serem violações de direitos? Vai censurar o livro de Sérgio Buarque? Suprimir versos antissemitas de O mercador de Veneza? Rasurar o versículo do Levítico que condena à morte o homem que se deita com outro homem?
Livros não são violações da dignidade humana. Muitos deles contêm ideias equivocadas, preconceituosas, nefastas, mas estas sempre podem ser corrigidas, desmentidas e contestadas por outros livros.
Às vezes, isso nem é necessário: muitos livros ruins são simplesmente ignorados ou esquecidos pelos leitores. É o que deveria ter acontecido com quatro obras jurídicas perdidas em uma biblioteca universitária do Paraná.
Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor
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