O quadro A Primeira Missa, de Victor MeirellesA Primeira Missa, no quadro de Victor Meirelles (1860): da Terra de Santa Cruz ao Brasil - Foto: Reprodução

O Brasil medieval

Não é exagero dizer que o homem que colonizou o Brasil tinha uma mentalidade puramente medieval
30.08.24

Não existiu medievo brasileiro. Não segundo a divisão histórica corrente. Acontece que em termos culturais os períodos não são tão estanques. No livro O Diabo e a Terra de Santa Cruz, de Laura de Mello e Souza, é descrito como, no caso do descobridor da América, Cristóvão Colombo, “o pensamento medieval se somou ao aventureiro intrépido de uma nova era – a das navegações e das descobertas – também o hábito de ouvir se aliou ao de ver, numa espécie de premonição do primado visual caracteristicamente barroco”.

No caso do descobrimento do Brasil existiu dinâmica semelhante. Ora, o Renascimento, e com ele a Era Moderna, afirmou-se tardiamente na Península Ibérica. E demorou ainda mais para adentrar o imaginário das pessoas comuns – cheias de superstições e de uma religiosidade profundamente medieval. Não é exagero dizer que o homem que colonizou o Brasil – este “imenso Portugal”, para citar o título do livro de Evaldo Cabral de Melo – tinha uma mentalidade puramente medieval.

Frei Vicente Salvador, no livro História do Brasil (1627) faz uma interpretação bastante singular do nome do nosso país, que envolve o bem e o mal, Deus e o diabo, e que provavelmente inspirou o título do livro de Laura de Mello e Souza. Com a primeira missa, celebrou-se a Santa Cruz e deu-se o nome de Terra de Santa Cruz àquela nova região, o que durou muitos anos. Porém, o demônio, vendo que perdera o domínio que tinha sobre os homens daquela terra, trabalhou para que esquecesse o primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil, por causa de um pau de cor abrasada e avermelhada.

Laura ressalta que o descobridor da América pensou seriamente em usar o ouro americano para financiar as Cruzadas. Mas a relação entre descobrimento do Brasil e as Cruzadas é ainda mais intrínseco: Jorge Caldeira, no livro História da Riqueza no Brasil mostra como a extinção da Ordem Templária, e sua restauração em Portugal como Ordem de Cristo, foi fundamental para os descobrimentos. A tecnologia das navegações, usadas para conectar Oriente e Ocidente nas Cruzadas, terminou servindo aos descobrimentos. Em 1418, Dom Henrique conseguiu uma bula papal autorizando o projeto das navegações,  classificando-as como uma cruzada.

Os arquivos da Santa Inquisição em Portugal e no Brasil são testemunhos fiés da mentalidade medieval existente no Brasil Colônia: as superstições, inclusive de caráter demoníaco, a religiosidade popular, a prática de magia integrada ao cotidiano do campo e das cidades – cidades que tinham uma estrutura medieval, vale lembrar.

A Inquisição voltou-se contra essas práticas, puniu muitos, mas não conseguiu extinguir tal mentalidade mágica. Se você lê a história de Lampião – que para mim é um cavaleiro medieval em pleno século XX – verá uma história que envolve religiosidade profunda, histórias fantásticas, superstição.

Lampião era profundamente religioso, rezava o terço todo dia com o seu bando, tinha um orientador espiritual (o Padre Kehrle), se ajoelhava e beijava a mão de qualquer padre que encontrava e, ao mesmo tempo, era excessivamente supersticioso, carregava patuás e amuletos, se consultava com videntes (a Vidente de Umã, por exemplo).

Aglae Lima de Oliveira, no livro Lampião, Cangaço e Nordeste descreve um pouco das crendices do cangaceiro. Ela cita o cangaceiro Barreira, que descreve uma cena interessante: Maria Bonita e Lampião estavam na beira de um riacho, quando um sabiá voou alto e ficou pertinho dele. Lampião levantou-se às pressas e ordenou que todos saíssem dali imediatamente, interpretou a presença do pássaro como um sinal. Cinco minutos depois, a volante cercou o riacho. “O sexto sentido de Lampião dava-lhe intuição que os companheiros o consideravam bandido-chefe, adivinho ou profeta”, diz o cangaceiro.

Tal tipo de religiosidade – profundamente supersticiosa – constrangeria um religioso moderno, mas não um religioso medieval. Até hoje, no interior do Nordeste, esse tipo de religiosidade supersticiosa permanece e se manifesta inclusive esteticamente: a religiosidade do sertão é colorida, como era colorida a religiosidade medieval – as catedrais eram pintadas com cores fortes, eram cheias de bandeirinhas (como as bandeirinhas de São João).

Josias Teófilo é jornalista, escritor e cineasta

 

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  1. O Brasil nunca saiu da idade média vivemos no país da mentira e da fraude com miliardários a escravizar a nação que tão apropriadamente o hoje presidente do STF do exterior denominou "MANÉS" sob controle de um bando no poder controlado por 19milhões de famílias a receber bolsas esmolas envolvendo a sobrevida miserável de 90milhões de brasileiros dependendo do ditador da vez .. voltamos à Roma com um triunvirato de três podres poderes massacrando a nação omissa, submissa e aterrorizada.

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