Imagem: IA por Alexandre Borges

Kamala, uma czarina em cima do muro

A maioria dos americanos acha que o governo lidou muito mal com o problema dos imigrantes ilegais. A vice-presidente e agora candidata tenta fazer de conta que não é com ela
30.08.24

Ninguém precisa saber que czar é, há mais de mil anos, a maneira como imperadores de diversos países como Bulgária, Sérvia e, claro, Rússia, são tratados. Ou que se fala tsár e não qui-zar. Ou que a origem da palavra, bem como do kaiser alemão, vem do latiníssimo Caesar, que virou o nosso César, mas para os latinos clássicos era pronunciado cae-ssar (que, por sua vez, quer dizer “cabeludo”). O que todo mundo sabe é que, se alguém é chamado de
“czar” de alguma coisa, é porque tem muito poder sobre aquilo.

Em março de 2021, Joe Biden anunciou que sua vice, Kamala Harris, seria a nova responsável por liderar os esforços para controlar a fronteira sul dos EUA, tradicional porta de entrada de incontáveis imigrantes ilegais via México. E é claro que sua tarefa não acabaria aí. Ela também ajudaria a diminuir nada menos que a pobreza na América Central, atacando a sua raiz e tirando o incentivo da invasão dos latinos “não documentados”, para ficar no eufemismo usado pela esquerda americana.

Assim como Dilma Rousseff, que em certo momento começou a ser tratada como “a mãe do PAC”, a “gerentona”, Kamala Harris passou a ser apelidada de “czarina da fronteira”, termo que ela nunca negou e ao qual nunca se opôs. O que não estava no horizonte de ninguém naquele momento era que a ex-procuradora californiana, escolhida por critérios identitários, segundo o próprio Biden, para sua chapa vitoriosa em 2020, seria alçada ao posto de candidata presidencial na eleição deste ano, com o atual presidente tendo uma aposentadoria compulsória e involuntária.

Como é de praxe por lá, sua vida e obra passaram a ser escrutinadas e seu papel de imperatriz da imigração, que toca numa das questões políticas mais sensíveis da América atual, voltou às manchetes. Passados quase quatro anos, mesmo o mais apaixonado defensor de Kamala Harris teria dificuldade de citar qualquer êxito da czarina em sua função. A direita americana veio com tudo e boa parte da imprensa esqueceu o mérito e passou a discutir a questão irrelevante de como, quando e se ela tinha mesmo sido empossada literalmente como czarina.

Em junho de 2021, com três meses no cargo, Kamala Harris começou um tour pela América Central, passando por Guatemala, El Salvador e Honduras. Numa coletiva ao lado do então presidente da Guatemala, Alejandro Giammattei, disse a frase que chocou a ala mais à esquerda do seu próprio partido: “se vocês [imigrantes ilegais] vierem para nossa fronteira, serão mandados de volta (…) Não venham, não venham”. A direita, em geral menos afeita a discursos e abstrações grandiloquentes, foi cética em relação aos resultados futuros daquelas palavras.

Uma das principais promessas da dupla Biden-Harris foi acabar com o Título 42 do governo Trump. Foi uma medida implementada durante a pandemia de Covid-19, a partir de março de 2020. Justificada como uma ação de saúde pública, permitia a expulsão rápida de imigrantes ilegais que tentassem entrar nos Estados Unidos. A intenção declarada era prevenir a propagação do coronavírus, mas a medida também serviu como um método rígido de controle de fronteiras.

Enquanto esteve em vigor, o Título 42 foi criticado por grupos de direitos humanos que argumentavam que ele violava as obrigações dos EUA de proteger refugiados e solicitantes de asilo. Mesmo com Biden mantendo a medida até maio de 2023, ela acabou suspensa quando a pandemia foi dada como encerrada. Para os ativistas de esquerda, o Título 42 virou um símbolo de como a pandemia foi usada para justificar políticas de imigração insensíveis.

O primeiro resultado que Kamala Harris deveria entregar, ao final de seu mandato, seria uma clara diminuição dos “encontros na fronteira” (em inglês, “border encounters”). Trata-se do número de vezes que imigrantes foram interceptados ou abordados pelas autoridades da fronteira dos Estados Unidos, ao tentar entrar ilegalmente no país. Esses encontros incluem tanto as pessoas que são detidas enquanto tentam cruzar a fronteira quanto aquelas que são
imediatamente devolvidas ao seu país de origem.

Com o fim do Título 42, o que era uma crise virou uma calamidade. Durante do governo Biden-Harris, até o final de 2023, foram registrados mais de oito milhões de “encontros na fronteira”. Como se não bastasse, houve um aumento exponencial do contrabando de fentanil, um opioide sintético, 50 a 100 vezes mais forte que a morfina. Ele é usado na medicina para tratar dores intensas, especialmente depois de cirurgias ou em pacientes com câncer. Já o fentanil vendido ilegalmente é uma das principais causas de overdose nos Estados Unidos. O fentanil ilegal pode ser misturado com outras drogas, muitas vezes sem o conhecimento do usuário, o que aumenta o risco de morte. Só em 2023, mais de cem mil americanos perderam a vida por overdose, sendo os opióides responsáveis por 75% dos casos.

Hoje, 57% dos americanos consideram que “lidar com a imigração” deveria ser uma das prioridades do governo. Entre republicanos, 76%. Trump não fez por menos, prometeu acabar com o “desastre” atual, retomar o Título 42 e promover as maiores deportações da história do país. Mesmo eleitores que tradicionalmente não votam nos republicanos têm se mostrado sensíveis às propostas mais rígidas de Trump, que defende seu legado como muito superior ao da adversária.

Em janeiro deste ano, a Pew Research revelou que 80% dos americanos acham que o governo federal está “lidando mal” com os imigrantes na fronteira sul (EUA-México). Desses, 45% disseram que o governo está fazendo um trabalho “muito ruim”. Esta percepção negativa é compartilhada por 89% dos republicanos e nada menos que 73% dos democratas. Mais da metade dos americanos (52%, na mesma pesquisa) dizem querer aumentar as deportações de pessoas que estão no país ilegalmente.

Com uma realidade difícil de defender, muda-se a narrativa. Os democratas e seus acólitos na imprensa tentam emplacar que, na verdade, ela nunca foi a czarina de nada, que é tudo invenção republicana, como se fosse possível hoje fazer a velha tática stalinista de apagar partes indesejáveis, incluindo pessoas, de fotos.

A popularíssima série A Casa do Dragão, da HBO, tinha entre os protagonistas Rhaenys Targaryen, interpretada com maestria pela britânica Eve Best, a “rainha que nunca foi”. Agora os democratas tentam emplacar que Kamala Harris é a “czarina que nunca foi”, mas a relutância da candidata democrata em dar entrevistas é um sinal de que, mesmo ela, sabe que não será nada fácil ficar em cima do muro.

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  1. Eu adoro o Antagonista, mas essa reportagem é cínica. Os outros Antagonistas teriam sido muito mais cuidadosos na sua abordagem aos desafetos. Você nem deveria fazer parte desse veículo.

  2. A Kamala nunca foi responsável pelo controle da fronteira. O que foi designado pra ela foi um trabalho de longo prazo, o de tentar, através de esforço diplomático, entender e mitigar as causas da imigração em 3 países, Guatemala, Honduras e El Salvador. O aumento da imigração não adveio desses países, mas de outros. Essa reportagem não explica nada do que abordei, e fica na platitude de acusar a Kamala pelo transtorno que é a fronteira sul dos Estados Unidos.

  3. É muito conveniente esquecer de falar no artigo que o Trump, no afã de deportar imigrantes na fronteira, separou milhares de crianças de seus pais. Também aqui não foi dito que o Obama deportou muito mais imigrantes do que o Trump. Outro esquecimento conveniente foi mencionar que o congresso tinha uma pauta bipartidária pra atenuar os problemas da fronteira, mas por questões eleitoreiras, o Trump mandou seus fantoches no congresso matar a proposta. O legado do Trump vai ser o de querer dar um golpe de estado. De conseguir emplacar vários justices hiper conservadores na corte suprema. Tomara ele perca a eleição. Os Estados Unidos não merecem um criminoso como chefe de estado. Se nos Estados Unidos o voto fosse popular, ele não teria se elegido. E perdeu por 7 milhões de votos pro Biden. Kamala não é a candidata ideal, mas ela vai ser melhor que o Trump.

  4. A cada eleição a imprensa joga mais uma pá de cal sobre seu caixão. É insana a negação da responsabilidade da Kamala na política de imigração americana quando é facílimo acessar a informação contrária (e verídica) por outros meios de mídia.

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