Fellipe Sampaio /STF

A Vaza Toga só interessa a quem se interessa por democracia

São desonestas as vozes da imprensa e da política que dizem que o escândalo envolvendo Alexandre de Moraes serve apenas aos interesses do bolsonarismo
23.08.24

Elvira Cupello Calônio morreu estrangulada com uma corda de varal, a mando do Partido Comunista Brasileiro (PCB). O crime se deu em 1936, no Rio de Janeiro, em uma casa onde membros do PCB se escondiam depois do malogro da Intentona Comunista, no ano anterior. Também ela militante comunista, a vítima, sem saber, havia caído em desgraça no Partidão. Luís Carlos Prestes estava convencido de que Elza Fernandes – pseudônimo que Elvira adotou para suas atividades clandestinas – entregara informações à polícia, o que nunca ficou provado. O veredicto do “Cavaleiro da Esperança” prevaleceu sobre a avaliação de outros líderes partidários, que hesitavam em dar a ordem fatal. Elvira (ou Elza) tinha 16 anos quando foi assassinada.  

Essa história está muito bem contada no romance Elza, a Garota, de Sérgio Rodrigues. Obra de ficção amparada em abrangente pesquisa histórica, o livro acompanha Molina, um jornalista que, já no século XXI, decide investigar esse episódio nada glorioso da história do PCB. A certa altura do livro, ele fala de seu projeto a Zé, amigo dos tempos de faculdade que é “filiado de primeira hora e eleitor fundamentalista do Partido dos Trabalhadores”. “A quem interessa contar essa história?”, questiona Zé, depois de ouvir o antigo colega. 

A pergunta define não só esse personagem secundário de Elza, a Garota, mas um tipo de intelectual: aquele que recusa a verdade se ela servir de alguma forma a seus inimigos políticos. 

Em uma série de reportagens, a Folha de S. Paulo vem publicando mensagens que um assessor direto de Alexandre Moraes trocava com um funcionário do TSE. Com informalidade atípica para o meio jurídico, o primeiro pede laudos ao segundo, para embasar decisões do ministro do STF em seus intermináveis inquéritos. Desde que a primeira reportagem foi publicada, no dia 13, têm-se repetido por aí, em variadas formulações, a pergunta casuísta de Zé: “A quem interessa contar essa história?”. Aqueles que a fazem já têm a resposta pronta: interessa só aos bolsonaristas.  

A resposta é parcialmente correta. A pergunta é completamente equivocada. 

No romance de Rodrigues, a pergunta de Zé, longe de ser inocente, traz uma resposta implícita: a história de Elza serve aos propósitos da direita e por isso não deve ser contada. É revelador que Zé nunca questione a veracidade dessa história. Ele não quer discutir a pesquisa de Molina – quer encerrá-la. 

No caso que O Antagonista batizou de Vaza Toga, a autenticidade das mensagens de WhatsApp reveladas pelo jornal tampouco foi posta em dúvida. Juristas, jornalistas, políticos divergem apenas sobre a gravidade dos fatos relatados. E o fato de que as reportagens tenham incendiado o debate público já atesta sua relevância jornalística. No entanto, muita gente boa tem dito ou sugerido que a Folha errou ao publicá-las, pois elas servem ao “inimigo”. Alega-se que as revelações sustentam a impostura de que o governo de Jair Bolsonaro nunca abrigou intenções golpistas, de que foi só uma vítima da perseguição do STF. Há também quem diga que as reportagens ajudarão anistiar os integrantes da Horda Canarinha que tocaram o terror em Brasília, embora nenhum dos casos relatados pelo jornal diga respeito ao 8 de janeiro.  

Os bolsonaristas sempre receberão com entusiasmo qualquer notícia que traga algum constrangimento para Xandão, seu nêmesis. Em entrevista a Crusoé na semana passada, Eduardo Bolsonaro diz que espera nada menos que a anulação de todos as condenações de seu pai no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por suspeição do então presidente da corte, Alexandre de Moraes. É do jogo. Política é esse negócio emaranhado e sujo, no qual a verdade pode ser útil para aqueles que vivem da mentira. Mas a verdade não deixa de ser verdade porque se faz mau uso dela. E a tentativa de ocultá-la por razões políticas é sempre desonesta. 

Na Vaza Toga, essa desonestidade se manifestou como uma forma de difamação. De forma aberta ou velada, imputa-se à Folha, aos autores das reportagens e a todos aqueles que a repercutem a pecha de bolsonarista. Estariam todos irmanados em um grande esquema para fragilizar o juiz que salvou a democracia e para trazer a extrema direita de volta ao poder.  

A Vaza Toga interessa, sim, aos bolsonaristas – mas não apenas aos bolsonaristas. Existe ali matéria que deveria preocupar todos os brasileiros. No dia em que escrevo, quarta-feira, 21 de agosto, uma nova reportagem da Folha mostra como um relatório requisitado ao TSE pelo secretário de Moraes embasou, em novembro de 2022, uma decisão que bloqueou por mais de um mês as contas de um deputado estadual do Paraná nas redes sociais. O deputado só teve acesso ao processo, que é sigiloso, uma quinzena depois que ele foi aberto. Foi punido sem saber por quê. 

Levantou-se contra ele a suspeita de incitação ao crime e de tentativa de abolição do Estado de Direito. Isso tudo só porque ele teria divulgado, nas redes sociais, o hotel em que os ministros do STF ficariam em Nova York durante mais um evento caro para discutir os problemas do Brasil no exterior. Só que o funça do TSE enganou-se nessa parte do laudo: o deputado paranaense não informou onde suas excelências estariam hospedadas. Deu apenas o local do evento, que já estava no site oficial.  

Tudo correu, segundo a Folha, sob o arbítrio exclusivo de um só ministro do STF, sem envolvimento do Ministério Público. 

Como em quase todos os casos da Vaza Toga, o objeto da ação é peixe pequeno no lago turvo do bolsonarismo. Não consigo entender o critério de Moraes na sua encomenda de laudos para o funcionário do TSE: os objetos investigados me parecem não só arbitrários, mas medíocres. Enquanto isso, ainda há um longo caminho a percorrer na elucidação do enredo golpista no Palácio do Planalto.  

Quando os inquéritos de Moraes serão devidamente concluídos? A resposta dessa pergunta interessa a todos

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Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

 

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  1. Ainda que asquerosa, a mentira (ou escamoteamento da verdade) para fazer progredir seus objetivos é arma velhíssima. O islão, por exemplo, tem o conceito de taqiya em que, originalmente, era usado para autorizar a um muçulmano mentir negando sua fé para escapar do martírio, tendo o seu sentido sido ampliado (e transformado em arma por gente inescrupulosa) para qualquer mentira que faça avançar a causa do islão

  2. Belas palavras MAS POR QUE órgãos de imprensa (Crusoé inclusa) censuram ou são obrigadas a isto e covardemente preferem ignorar o massacre e tortura mental de quem ousa lutar contra a ditadura triúnvira que não querem ver? Vamos à realidade DE QUE ADIANTA a luta se os escravizados não querem se livrar do cabresto, das pêias e das cangalhas dos ditadores a lhes impor a desdita controlada por esmolas e espórtulas? e sem a menor dúvida . O PIOR AINDA ESTÁ POR VIR .. e quem sobreviver chorará ...

  3. Quem comete arbitrariedades quer, além de calar as redes sociais, aplaudir a imprensa que se prestar ao engajamento no serviço dos poderosos e de suas conveniências… parabéns pelo texto, verdadeiro gol de placa!

  4. Vivemos em uma época sombria, em que são escancaradas as deformações das instituições que deveriam funcionar em uma democracia. Há saídas?

  5. Moraes não tem intenção alguma de concluir o inquérito. Se ele concluir, o STF terá que julgar e, nessa hora, podem aparecer as arbitrariedades que ele praticou.

  6. Atemorizar os bagrinhos e calar a boca de todo mundo , para eles continuarem unidos na escalada das arbitrariedades. Assim, bandidismo de alto calibre ficarão protegidos e não oferecerão nenhum risco aos togados.

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