Brasília (DF) 19/06/2024 Deputado Sóstenes Cavalcante autor do Projeto de lei que equipara o aborto a homicídio durante coletiva com a bancada evangélica da Câmara. Obs: O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira mandou acabar a entrevista. Foto Lula Marques/ Agência Brasil

O aborto da razão

Como a tentativa da bancada evangélica de mudar a legislação sem debate feriu a própria causa pró-vida
21.06.24

Diante de assuntos tão divisivos quanto o aborto, talvez o máximo que se possa ambicionar em um país são períodos em que as discordâncias se mantêm em fogo brando. O Brasil parece estar saindo de um desses períodos para uma situação mais explosiva.  

No último dia 12, a Câmara aprovou a tramitação em regime de urgência do PL 1.904, que proíbe a interrupção da gravidez após a vigésima segunda semana de gestação. Seu autor é o deputado Sóstenes Cavalcanti (foto – PL-RJ), um dos expoentes da Frente Parlamentar Evangélica, FPE.  

A manobra fracassou quando ficou evidente que, se o texto fosse aprovado, abortos em casos de gravidez decorrente de estupro, hoje isentos de punição no Brasil, poderiam resultar em penas mais rigorosas para as mulheres do que para estupradores.  

Mas a necessidade de recuar, diante da reação indignada até mesmo de pessoas que, de outra maneira, poderiam permanecer afastadas da discussão, não significa que a intenção tenha sido abandonada.  

O presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL), duramente criticado por ter encaminhado a votação da urgência, prometeu criar uma “comissão representativa”, para discutir o tema com vagar. Ele está em campanha para eleger seu sucessor no comando da casa e fará o que for necessário para não alienar a “bancada da Bíblia”. 

Na quarta-feira, 19, a FPE convocou uma entrevista coletiva para anunciar que continuará lutando pela mudança da legislação sobre aborto ainda em 2024 – mesmo sendo este um ano de eleições. 

Isso mostra uma nova realidade, em que os valores religiosos reclamam espaço na esfera pública brasileira. Nessa realidade, a ideia de Estado laico – tal como é o Brasil, segundo a Constituição de 1988 –, precisará ser explorada com maior cuidado. 

No sentido mais básico, trata-se de garantir que nenhuma religião comande a política, mas também de garantir que o governo será neutro diante das religiões, sem oprimi-las ou privilegiar uma delas. Mas é bem mais complicado do que isso.

Dentre todos os países, a França é provavelmente aquele onde o conceito de laicidade está mais associado à identidade nacional. Há pesquisas de opinião mostrando isso. Porém, segundo o sociólogo Jean Baubérot, fundador da “sociologia da laicidade”, nada poderia estar mais longe da realidade do que imaginar que todos os franceses se referem à mesma coisa quando usam a palavra. Em um de seus livros mais recentes, ele afirma que há nada menos que sete tipos de laicidade na França — desde a antirreligiosa até a identitária, que teria se desenvolvido em resposta ao grande fluxo de imigrantes muçulmanos recebidos pelo país nas últimas décadas. 

A laicidade antirreligiosa foi uma característica de movimentos intelectuais como o Iluminismo, no século 18, e de movimentos políticos como o comunismo, no século 20. Continua sendo uma característica de todos os discursos que tratam como mero obscurantismo ou irracionalidade, por exemplo, a defesa da vida como um bem sagrado — crença que está por trás de muitas rejeições radicais ao aborto, em qualquer circunstância.  

Insistir que um Estado laico não pode conviver com símbolos religiosos de nenhuma espécie em prédios públicos, ou exigir que as pessoas se desfaçam das suas crenças e sentimentos religiosos, que podem ser a parte mais profunda de sua identidade, até mesmo para discutir questões fundamentais como vida e morte, são exageros – ou impossibilidades.  

A esquerda, em particular, é dada a esses vícios. Quanto mais persistir neles, mais a política brasileira tenderá para a polarização e os radicalismos. Jamais conseguirá conversar com os evangélicos.

Por outro lado, o episódio do PL 1.904 mostrou a mistura entre política e religião sob a pior luz possível. Extraordinariamente mal escrito, o projeto não se deu ao trabalho de mapear suas consequências. Ou talvez tenha se dado, e nesse caso não se importou com a situação cruel que poderia acarretar para mulheres e meninas. Arrogantes, seus patronos julgaram representar uma maioria esmagadora, que festejaria a sua ousadia. Tiveram de retroceder e, provavelmente, prejudicaram a imagem da causa “pró-vida” que dizem defender.O problema é que agora ficou muito mais difícil convencer a sociedade de que essa proposta é uma proposta pró-vida e não um texto pró-estupro”, disse a Crusoé um líder da bancada da Bíblia.  

Recém-empossado presidente da FPE, o deputado Silas Câmara (Republicanos-AM) –, pastor da Igreja Assembleia de Deus do Amazonas, a igreja pentecostal mais antiga do país – parece ciente da necessidade de caminhar com cuidado na fronteira que divide política de religão. “Para quem é religioso, essa fronteira é sutil. Mas ela existe”, afirma ele. “Eu tenho um pastor que diz: ‘Silas, uma lei só é boa quando ela é boa para todo mundo’. Quando a lei não é boa para todo mundo, há algo errado. É um lembrete importante para quem está no Congresso e precisa criar leis.” 

A FPE foi criada em 2003, mas durante aproximadamente 12 anos não se estruturou de fato. Só se registrou na Mesa Diretora da Câmara em 2015, encorajados pelo enfraquecimento do governo Dilma Rousseff e do partido dominante de esquerda, o PT. Sentiram que havia uma nova receptividade para discursos conservadores.  

Apesar do nome, a FPE não é composta apenas por parlamentares evangélicos, como Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), integrante da Assembleia de Deus Vitória em Cristo e considerado porta-voz do pastor Silas Malafaia, e o atual presidente do grupo, Silas Câmara (Republicanos-AM), pastor da Igreja Assembleia de Deus do Amazonas – a igreja pentecostal mais antiga do país.  

Mas lá também se encontram Diego Garcia (Republicanos-PR), presidente da Frente Parlamentar Católica, integrante da Renovação Carismática Católica (RCC) e ex-presidente do Conselho Diocesano na Diocese de Jacarezinho, no Paraná, e o senador Eduardo Girão (Novo-CE), espírita assumido e devoto de São Francisco de Assis. 

Além disso, há também políticos que não são especialmente conhecidos pela sua devoção, como Maria do Rosário (PT-RS), Renan Calheiros (MDB-AL) e até Josimar Maranhãozinho (PL-MA), investigado pela Polícia Federal por integrar uma organização criminosa acusada de desviar recursos de emendas parlamentares. 

Atualmente, a FPE é composta por 202 deputados e 26 senadores. Na Câmara, o número equivale a 65% dos votos necessários para que se aprove uma emenda constitucional. É um contingente expressivo. Há duas frentes maiores que a FPE: a Frente Parlamentar Agropecuária, FPA, com 294 deputados, e a Frente Parlamentar da Segurança Pública, com 253. Há muita intersecção e alinhamento entre os três grupos, que já vem usando sua força, sobretudo, para brecar iniciativas do governo Lula. A tentativa de aprovar um projeto sobre aborto foi a mais ousada e polêmica iniciativa desse bloco até hoje. Não vai ficar por aí.

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  1. Até há bem pouco tempo, tinha-se como certo que a formação do córtex central - à partir da 12a semana - estaria declarada A VIDA. Pula-se de 12 para 22 e há gente que ainda grita. Uma coisa muito ruim é ser um filho rejeitado. Pior só se morto ainda no útero e é, com base na premissa da 12a semana, que toda essa discussão está envolvida. Gostaria de ler um comentario ou um artigo esclarecedor sobre o porquê dessa progressão: da 12a para a 22a.

  2. O aborto é um assassinato causado pela miséria e deseducação, de nada adianta leis repressivas e absurdas que punem a mulher de forma violenta e pouco aos seus algozes quando é o caso.

  3. Como cristãos protestante, tenho acompanhado outro PL, o chamado Estatuto do Nascituro, que penso ser muito mais completo em suas reivindicações e propostas, que está a bastante tempo sendo debatido no Congresso.

  4. Pois bem, Sra presidente Lula. Mande o mi interior da saúde mandar nossos irmãos nordestino se reproduzirem feito ratos pata ganhar benéficos e comprar moto e usar droda. Dez a os depois tudo roubando, matando e delegaias cheias de adolescentes.

  5. No segundo parágrafo, o sobrenome de autor do perverso projeto de lei está errado. è Cavalcante, e não Cavalcanti! Por respeito ao assinante: revisem devidamente os textos antes de publicá-los.

  6. Onde estão as feministas,as associações d proteção aos direitos d mulheres?Ñ estou ouvindo gritaria desses grupos.Como uma mulher d 73 anos,pergunto:por q esses homens,cada um + bandido do q o outro,querem decidir uma coisa q ñ lhes diz respeito,o aborto?Isso é uma coisa exclusiva d mulheres e só elas podem decidir qdo e porquê.Mulher nenhuma poderia ser criminalizada p/fazer pq nenhuma faz isso p/prazer.Os homens ñ dão conta de acabar c/a pobreza do país,mas querem decidir sobre a barriga fem.

  7. A FPE precisa de uma assessoria política pra analisar o impacto regulatório de suas propostas e evitar cair no ridículo

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