Jonas Pereira / Agência SenadoTrabalhadores no prédio do Senado Federal: muita "fonte próxima"

Gentinha de confiança

São 90 mil pessoas em “cargos de livre nomeação”. É gente demais para confiar segredos
30.05.24

Eu, como o amigo leitor, a amiga leitora, sou um cidadão comum, um dos chamados rostos anônimos na multidão. Dou meus pulos, faço meus corres, como se diz, para sobreviver, fazer três refeições por dia, pagar meus boletos e abastecer a Democracia com os justos impostos que ela me… eu ia dizer que ela me cobra, mas a Democracia é boa e bacana, não cobra ninguém, de sorte que direi: com os impostos que ela me solicita.

(Solicitar é um verbo tão respeitável, né? Tão digno. Quem solicita está acima de quem pede ou de quem roga; por outro lado, quem solicita é bem mais simpático do que quem exige, impõe ou extorque. É a mesma coisa com “aguardar”: é tão mais digno do que “esperar”. Quem espera é gentinha; os melhores aguardam. O jeito correto de se fazer política é assim: fazer com que mais do mesmo não soe como mais do mesmo. E nunca usar palavras como “gentinha”.)

Enfim, o que interessa é que, em nossa qualidade triste de gente comum – gente que pede, não solicita; gente que espera, não aguarda –, nós não temos empregos a dar, comissões a conceder, e nem gente de confiança a quem encarregar. Não que eu não tenha gente de confiança na vida: tenho amigos íntimos, tenho meu encanador de confiança, meu barbeiro de confiança, meu açougueiro de confiança, até a gerente da minha conta de banco é quase, quase de confiança. E tenho certeza de que é assim com você também que me lê.

Não assim o Governo. Coitado: ele é obrigado a confiar em muito mais gente. Mais de 90.000 pessoas, que são as que detêm os chamados “cargos de livre nomeação, e que são – pelo menos, deveriam ser – gente da confiança do Governo. Ou, um pouco mais precisamente, da confiança de quem está no Governo. São cargos de direção e assessoramento, são funções e gratificações ditas “técnicas” que, somadas, dão esse público de final de campeonato – apenas, um público que se repete todos os meses, recebendo e não pagando, ao longo de todos os Governos.

Mas nem é questão (só) de dinheiro. Noventa mil é gente demais. Meu falecido pai dizia, aliás com toda a razão, que contar um segredo é ter outra língua além da sua com que se preocupar. Imagine, portanto, ter que confiar em noventa mil línguas, em noventa mil canetas ou lápis, em noventa mil zap-zaps, e-mails, telefones, conversas de elevador ou de alcova. É demais. Não é à toa que pipoca tanto escândalo dia sim, outro também, tanta revelação, tanta coisa dita por “fonte próxima”.

Cuidado, pois, ó Governo, com sua cambada de livres nomeados, seu exército de confiados – seus ministros, seus assessores disto, confidentes daquilo, ombros amigos das quantas, massagistas de corpos e de egos, dentistas, arquivistas, gabineteiros, secretários, apresentadoras de canais de notícias, barbeiros, ascensoristas, tiozinhos do café, garçons, recepcionistas bonitinhas, valets, factótuns, henchmen. É gente demais para manter na corrente.

* * *

Confiança é coisa que se tem e que se dá. “Dar confiança” tem dois significados. Um é o de conceder atenção meio indevida ou intimidade, familiaridade. Outro é o dos coaches e dos técnicos esportivos, aquele da massageada no ego de um comandado, de um parente, de um amigo, de falar: vai lá e arrebenta, vai lá e mostra pra eles. Neste último sentido se costuma dizer “passar confiança”, até para não confundir com o primeiro sentido; mas quem passa, dá. Ora.

Às vezes essa familiaridade é só de fachada. É o caso de político que se faz conhecer pelo apelido – Deputado Navalhada, Senador Ballantine’s, Presidente Paz & Amor, essas coisas. A gente pensa que ele é nosso amigo só porque se deixa tratar pela alcunha. Não é nada disso; ele não te deu e nem te dá a mínima confiança. O máximo que ele te dá é oi e tchau. De preferência, tchau. E de longe.

 

Orlando Tosetto Jr. é escritor. 

 

As opiniões emitidas pelos colunistas não necessariamente refletem as opiniões de O Antagonista e Crusoé

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Com tantos apaniguados e asseclas a achacar o país nem Zeus nos salva do caos, a ditadura de três poderes poderes acolitados já se instalou e em breve seremos uma nova Venezuela desgovernada por criminosos.

  2. Que bom te ler de novo. Pensei que não estava mais na Crusoé. Imagina!!! Mas, vamos lá, Eu imagino que 80% dos funcionários passa boa parte do seu dia fofocando. Os outros 20% são aqueles coitados que trabalham e conseguem fazer algo que preste em Brasília.

Mais notícias
Assine agora
TOPO