ReproduçãoSites subalternos ao PT aproveitaram o comentário de Maher para reforçar a lenda da democracia restaurada por Lula

Bill Maher nunca falou do Brasil 

O elogio do humorista americano a nossa democracia agradou os petistas, mas na verdade só entramos na conversa como pretexto para uma crítica à bagunça política dos Estados Unidos
02.02.24

Bill Maher acredita que o Brasil é uma democracia modelar. Ou, pelo menos, que poderia servir de modelo à democracia mais antiga do continente americano. A jovem e remendada constituição do Brasil, diz o humorista americano, seria mais eficiente para barrar ambições autoritárias do que a vetusta e venerável Constituição dos Estados Unidos.

Essa avaliação sustenta-se sobre os diferentes tratamentos que brasileiros e americanos teriam dado a seus presidentes insurrectos. Depois do ataque ao Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, Donald Trump segue com a popularidade em alta e tem boas chances de vencer as eleições presidenciais deste ano. No Brasil, a imitação bolsonarista da insurreição trumpista, em 8 de janeiro do ano passado, precipitou a desgraça de Jair Bolsonaro, que foi declarado inelegível e hoje é um “pária” em seu país. Ou pelo menos é assim que a história é narrada em um corte do programa Real time with Bill Maher que vem circulando pelas redes e repercutindo na imprensa brasileira.

Gosto da verve seca e sardônica de Maher. Embora sua posição política seja muito clara, ele não é previsível. Muitas vezes, irrita espectadores de seu próprio campo político, o que torna o Real Time mais interessante do que outro programa jornalístico-humorístico da HBO, o Last week tonight, conduzido pelo humor limpinho de John Oliver. Maher, no entanto, não contou direito a história brasileira. Em parte, isso é compreensível: sua equipe de redatores não deve empregar um brasilianista para produzir um comentário de cinco minutos a cada dois ou três anos. Mas creio que Maher não peca só por ignorância: malandro, ele selecionou e acomodou fatos para defender a tese de que a democracia brasileira anda mais saudável que a americana. Para demonstrar que Bolsonaro é hoje um pária, ele cita uma pesquisa segundo a qual só 6% dos brasileiros aprovam a barbárie da Horda Canarinha no 8 de janeiro. Só que isso não significa necessariamente rejeição a Bolsonaro.

Nem Lula deve acreditar que Bolsonaro tornou-se um pária. Mesmo enrolado em escândalos como a “Abin paralela”, ele segue tendo voz na cena nacional. Segundo uma pesquisa realizada em agosto do ano passado pela AtlasIntel para a CNN, 40% dos eleitores cogitam votar no capitão das espoletas – que foi declarado inelegível pelo TSE – em uma eleição vindoura. Aliás, Maher também deixa a falsa impressão que Bolsonaro está impedido de se candidatar por causa da bandalheira que seus partidários promoveram em Brasília. Nem sequer há acusação formal ligando diretamente o ex-presidente à intentona tonta.

Sites subalternos ao PT – aqueles de sempre… – aproveitaram o comentário de Maher para reforçar a lenda da democracia restaurada por Lula. O entusiasmo pelo gringo que elogia o Brasil é circunstancial, claro. Quem não lembra das querelas em torno das capas da The Economist? Era a revista mais reputada do mundo (para os petistas) quando sua capa trouxe, em 2009, um Cristo Redentor subindo do Corcovado aos céus, como um foguete, sob o título “O Brasil decola”. Tornou-se um ninho internacional de golpistas quando a mesma estátua apareceu em queda livre em uma capa de 2013.

Não é assim só com o PT: a crítica negativa, quando vem de fora, raramente é respondida em termos razoáveis. Esquerda e direita tendem a invocar o espectro da “interferência externa” em assuntos nacionais. Até Fernando Henrique Cardoso, o menos provinciano de nossos mandatários desde a redemocratização, espetou-se, em 2002, com o episódio de Os Simpsons que nos retratava como uma nação sem lei, uma terra pitoresca e bárbara onde macacos e ladrões achacam o turista estrangeiro. A seu modo aristocrático, ele respondeu afetando indiferença: seu porta-voz disse que o presidente não comentaria o desenho animado que “traz uma visão distorcida da realidade brasileira”. Mas quem diz que não somos nós que temos uma visão distorcida do Brasil?

Nós, nos, nosso: acabei resvalando nessa escorregadia primeira pessoa do plural que permite a um autor individual falar da coletividade (ou nacionalidade) à qual pertence sem se comprometer inteiramente com ela. “Nós”, brasileiros, somos assim, maus, errados, burros, corruptos, violentos, racistas – mas “eu” não sou nada disso! Essa conjugação retórica de identidade grupal e distanciamento crítico já teve empregos respeitáveis: o pronome “nós” é recorrente, por exemplo, em Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (“…daremos ao mundo o ‘homem cordial’“). Hoje, porém, presta-se a usos capciosos. Quem ainda aguenta ler mais um texto falsamente autocrítico no qual consta a expressão “nós, enquanto sociedade”?

O próprio Maher recorre ao plural ambivalente perto da conclusão de seu comentário: “Nós nos tornamos um povo mais escroto do que éramos antigamente”. Trata-se de um americano falando do povo americano. Está ofendendo a si mesmo? Eu diria que não: ao acusar a “escrotidão” americana, Maher isenta-se dela.

O centro de seu discurso é a bagunça política e institucional dos Estados Unidos, país que na eleição presidencial de novembro provavelmente terá entre os candidatos o sujeito que tentou invalidar a eleição anterior. O Brasil entrou na conversa apenas como um improvável termo de comparação. Para dar mais contraste ao paralelo, Maher, que nunca deve ter ouvido falar em Centrão, Bia Kicis ou Gleisi Hoffmann, inflou as virtudes do sistema político brasileiro. O subtexto de sua diatribe, porém, não é tão lisonjeiro quanto os governistas brasileiros imaginam. Resumido a uma frase, o lamento humorístico de Bill Maher seria mais ou menos assim: “A política americana anda tão escrota que até a política brasileira a supera”.

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  1. Jerônimo, essa expressão "nós, enquanto sociedade..." já me faz trocar de canal se eu estiver começando a assistir uma entrevista.

  2. Maher é um excelente humorista e seu programa é bastante bom. O editorial é escrito pelo próprio, sua equipe trabalha no monólogo e outros trechos de humor. Geralmente ele oferece um boa mescla de humor com informação no editorial, mas nesse ele se mostrou completamente ignorante do que se passa no brasil, utilizando fatos (errados) à la carte pra criticar o sistema americano, seu verdadeiro intento.

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