STF/DivulgaçãoO plenário do tribunal: hora de tirar lições de Estados Unidos e Argentina

Como consertar o STF

As ferramentas que o Congresso dispõe para aprimorar a Corte 
30.11.23

Em toda a Esplanada dos Ministérios, não há ninguém mais desagregador que Flávio Dino. Como ministro da Justiça e Segurança Pública, Dino é o principal responsável por lidar com os problemas da criminalidade e tráfico de drogas — exatamente as duas áreas de maior desaprovação ao governo Lula. Pressionado por denúncias de que a “dama do tráfico” Luciane Barbosa, uma integrante do Comando Vermelho do Amazonas, tinha se encontrado com funcionários de sua pasta, Dino comandou um ataque furioso contra a imprensa e negou-se a comparecer às comissões de Segurança Pública na Câmara dos Deputados. Apesar do histórico problemático, Dino foi indicado na segunda, 27, pelo presidente Lula, para ocupar a cadeira vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal, STF.

A indicação gerou protestos na oposição e na imprensa. Três dias depois, o STF definiu que jornais, revistas e portais jornalísticos podem ser responsabilizados por declarações de seus entrevistados. Com isso, é de se esperar que alguns veículos comecem a controlar antecipadamente o que os convidados vão falar em programas ao vivo ou que simplesmente deixem de veicular algumas  entrevistas, para não correr riscos.

Nem a indicação de Dino, nem a decisão sobre a responsabilização dos veículos de imprensa podem ser desfeitos. Nessas duas situações, a sociedade brasileira foi mantida totalmente à margem. E tem sido assim há anos. Há um abismo separando o país do seu tribunal em Brasília. Uma pesquisa recém-divulgada pela Quaest apontou que apenas 17% da população vê o tribunal de forma positiva. O total dos que o veem negativamente é quase o dobro: 36%. São números preocupantes. Se o tribunal fosse um presidente da República, estaria pisando perigosamente no território minado do impeachment.

A esperança para reverter o declínio do STF não vem do tribunal, e sim do Congresso. Em 22 de novembro, o Senado aprovou uma Proposta de Emenda à Constituição, PEC, para coibir as decisões monocráticas no STF. A ideia, que segue para a Câmara, é apoiada por 66% dos brasileiros, também segundo a Quaest. Na quinta, 30, um acordo costurado entre o ministro do STF Gilmar Mendes e o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, propunha desengavetar um projeto de lei que só permite a concessão de liminares em recessos do Judiciário. Trata-se de uma iniciativa para desidratar a PEC que reduz as decisões individuais. Também nesta semana, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, anunciou que no ano que vem deve colocar para votação outra PEC, instituindo mandatos fixos para os magistrados. O apoio também é maciço: 68% dos brasileiros concordam com a iniciativa.

 

 

Assim como essas PECs, há muitas outras maneiras de se consertar o Supremo sendo debatidas entre parlamentares, sendo que algumas já foram testadas no resto do mundo, com resultados diversos. Após a promulgação da Constituição de 1988, foram necessários apenas quatro anos para que surgisse a primeira PEC para reformar o STF. Até 2019, outras 56 PECs foram apresentadas. A maior parte delas buscava alterar a maneira como os ministros são escolhidos e os critérios exigidos, como a idade mínima de 35 anos. Dezenove PECs visavam instituir um mandato fixo para os ministros, com duração que variava de 7 anos a 16 anos. O PT, curiosamente, foi o partido que mais apresentou PECs sobre o STF nesse período: nove.

Para o ano que vem, Rodrigo Pacheco pode escolher entre duas propostas já existentes. Uma é a PEC 16/2019, de autoria do senador tucano Plínio Valério, que institui um mandato fixo de oito anos, mas que pode ter o período alterado pelos demais congressistas. A outra é a PEC 51/2023, de Flávio Arns, do PSB, que pede um mandato de quinze anos e exigência de uma idade mínima de 50 anos aos indicados.

Mandato vitalício é um conceito em extinção. Tanto que são raros os países que hoje adotam esse sistema em seus tribunais constitucionais. Os Estados Unidos são basicamente os únicos que não estabelecem limite algum. A ministra Ruth Bader Ginsburg morreu aos 87 anos, em 2020, vítima de uma metástase de câncer no pâncreas, sem nunca ter largado a toga. Brasil e Argentina seguiram de perto os passos dos americanos, embora tenham tornado a aposentadoria compulsória aos 75 anos de idade. Outros países, que entraram na onda do mandato vitalício no começo, adotaram períodos fixos mais tarde. É o caso de Austrália, Canadá e Reino Unido.

Nos Estados Unidos, onde os justices (os ministros da Suprema Corte) ficam em média três décadas no cargo, juristas e parlamentares têm proposto mandatos de 18 anos. As substituições seriam escalonadas, de forma que cada presidente indicaria sempre dois nomes em cada mandato de quatro anos. Cerca de 68% dos americanos aprovam uma reforma nesse sentido. Entre os democratas, o índice é ainda maior: 78%. O movimento ganhou força quando o republicano Donald Trump começou a nomear justices em série em 2017. Os democratas então procuraram uma forma de conter sua influência. As propostas têm empacado por dois motivos. Primeiro, porque o presidente que hoje está em condição de indicar os nomes é um democrata, Joe Biden, com alguma chance de reeleição. Segundo, porque há o medo de que uma mudança legislativa para estabelecer mandatos fixos abra caminho para que se aumente o número de magistrados, que hoje é de nove. Nesse caso, o presidente de turno poderia preencher os cargos extras com seus apaniguados, o que os americanos chamam de “empacotar a corte”. Seria algo arriscado demais tanto para democratas quanto para republicanos.

 

 

Em teoria, a justificativa do mandato vitalício é a de que, uma vez que o magistrado é aprovado para o cargo, ele deixa de prestar contas ao presidente que escolheu o seu nome. Ganha, assim, total independência para avaliar os problemas que aparecem. A prática brasileira e americana, contudo, mostra que alguns ministros seguem fiéis aos seus padrinhos eternamente. As distorções que esse comportamento causa são enormes. Um presidente que consegue nomear vários jovens pode estender de maneira desproporcional a sua influência. O tucano Fernando Henrique Cardoso indicou três ministros, em oito anos de mandato. Lula, em nove anos, já indicou dez — um a menos que o necessário para completar o plenário. Não há nada que possa justificar tamanha disparidade entre os dois presidentes. Com mandatos fixos, o problema poderia ser atenuado. “Mandatos fixos em cortes supremas são um modelo muito comum no mundo. São pouquíssimos os casos em que os magistrados ficam no cargo até a aposentadoria”, diz Vitor Rhein Schirato, professor do Departamento do Direito de Estado da USP.

Na Argentina, os cinco ministros da Corte Suprema de Justiça da Nação podem pedir uma extensão aos 75 anos e ficar por mais cinco, mas não mais do que isso. O país, por outro lado, fez diversas mudanças com o intuito de melhorar o quadro de ministros da sua Corte constitucional. Em 1994, uma reforma elevou para dois terços o patamar para que um nome possa ser aprovado no Senado. “Isso faz com que o candidato precise alcançar algo próximo do consenso também na oposição, do contrário não será nomeado. Esse fator limitou a discricionariedade do Executivo e sua possibilidade de dominar a corte”, diz o argentino Gustavo Arballo, professor de direito público na Universidade Nacional de La Pampa, em Santa Rosa. Se no Brasil uma pessoa divisiva como Flávio Dino não terá maiores problemas para ser aprovado no Senado, onde é preciso apenas a maioria absoluta dos votos (50% mais um), na Argentina algo semelhante dificilmente aconteceria, por causa da exigência de dois terços. A mudança na regra teve resultados positivos e negativos. “Na Argentina, esse modelo evitou claramente candidaturas questionáveis. Mas a  dificuldade aumentou tanto que alguns cargos ficaram vagos por tempo demais”, diz Arballo.

Outra reforma importante na Argentina ocorreu em 2003, com um decreto do presidente Néstor Kirchner, de esquerda. O intuito foi tornar o processo de nomeação mais transparente e ampliar a participação da sociedade. Primeiro, os nomes dos candidatos ao cargo devem constar em uma lista, que é publicada duas vezes pela imprensa oficial. Isso permite que as pessoas vejam os nomes e conversem sobre suas qualificações. Organizações e partidos podem apoiar seus candidatos ou apresentar objeções. Ainda que a responsabilidade pela nomeação continue sendo inteiramente do presidente, o sistema produz um certo constrangimento. O decreto de Kirchner também afirma que a composição da Corte Suprema deve refletir as diversidades de gênero e das várias províncias e regiões do país. Para aqueles que acham que deveríamos ter mais mulheres no STF, fica a sugestão. Na Argentina, porém, o efeito na diversidade ainda não foi observado. O tribunal atualmente é composto por quatro homens brancos e por uma cadeira vazia, mas a situação pode mudar quando houver renovação. “O decreto de Néstor Kirchner era um ideal a ser buscado. O texto não determinava um número mínimo de mulheres, pois isso exigiria uma reforma constitucional”, diz Arballo.

 

 

Esses casos são aquilo que os especialistas em Direito chamam de “ex ante”, que é quando se tenta interferir nas situações que ocorrem antes que um ministro assuma o seu posto. Contudo, o Congresso também tem buscado agir “ex post”, alterando o funcionamento da corte. Um caso recente é o da PEC 8/2021 que tenta coibir as decisões monocráticas do STF. A medida foi encaminhada para a Câmara, depois de ter sido aprovada pelo Senado. Nesse caso, não há paralelo em outros países. “Isso é uma jabuticaba. Um ministro, sozinho, declarar a inconstitucionalidade de uma lei é um absurdo completo que não se vê em outros lugares”, diz Vitor Rhein Schirato, da Faculdade de Direito da USP. O bom-senso mandaria que os ministros fossem cautelosos ao julgar questões relacionadas à Constituição e sempre procurassem atuar de maneira colegiada. No Brasil, os apelos por autocontenção vêm sendo ignorados há tempos e os ministros esgrimem com desenvoltura esse enorme poder.

Um exemplo que vai na direção oposta foi dado pelos magistrados da Suprema Corte americana. Em 13 de novembro, os justices divulgaram um código de conduta. A decisão foi uma resposta a dois casos de conflitos de interesses envolvendo ministros. Veículos de imprensa revelaram que Clarence Thomas aceitou viagens de luxo, pagas por um bilionário republicano, e que Samuel Alito foi pescar no Alasca no avião de um administrador de fundos, envolvido em casos judiciais. Pegos no flagra, eles não atacaram a imprensa, não tentaram se defender colocando-se como os “guardiães da democracia”, nem relativizaram seus atos.

A reação da corte americana foi a criação do código de conduta, em que seus membros se comprometeram a evitar a impropriedade e a aparência de impropriedade em todas as atividades. Para a mulher de César, afinal, não basta ser honesta, mas parecer honesta. Eles também prometeram se abster da atividade política e de exercer apenas atividades extrajudiciais compatíveis com as obrigações do cargo judicial. No Brasil, as normas que regem as carreiras do Judiciário já existem, mas elas não impedem que os ministros frequentem festas privadas com políticos ou participem de eventos patrocinados por empresas com interesses nos tribunais federais. “Ainda que se criasse um código de ética específico e aplicável aos membros do Supremo brasileiro, não saberíamos se seus princípios e regras seriam por eles próprios aplicados ou como as violações seriam tratadas”, diz Antonio Sepúlveda, doutor e professor em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Mais do que uma questão de caráter ou de formação, o comportamento dos membros do STF também é determinado pela capacidade da sociedade de exercer pressão. “Nos Estados Unidos, o controle das instituições republicanas também é feito pela mídia, pela opinião pública e pelos partidos políticos. Todos exercem significativa influência sobre as instituições públicas e seus membros. No contexto brasileiro, tudo leva a crer que as forças atuantes não sejam capazes de constranger o comportamento dos ministros do Supremo Tribunal Federal”, diz Sepúlveda. Na quarta, 29, deputados da oposição protocolaram as 171 assinaturas para abrir a CPI do Abuso de Autoridade do STF e do Tribunal Superior Eleitoral, o TSE. O objetivo é investigar magistrados desses dois tribunais pela “prática de condutas arbitrárias sem a observância do devido processo legal, inclusive a adoção de censura e atos de abuso de autoridade”. Trata-se de um movimento de resultados incertos, porque depende do aval de Arthur Lira e porque muitos desses parlamentares não estão preocupados com as instituições, e sim com o fortalecimento da própria posição política — especialmente o bolsonarismo, cujo DNA é populista e autoritário. Seja como for, somente com o Congresso, a imprensa e a sociedade civil fazendo a sua parte é que o Brasil poderá ter um STF melhor. 

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  1. Deveria haver uma quarentena de pelo menos 2 anos (3 ou 4 seria melhor) para a indicação de nomes que fizeram parte do Congresso ou do executivo federal (ministros e cargos do segundo escalão) para o STF. E quarentena de um ou dois anos para indicação do PGR também ao STF.

  2. É impossível consertar a perfeição, e é impossível consertar deuses. A menos que eles reconheçam que não são uma coisa nem outra, o que é não é o caso do STF.

  3. O stf NÃO TEM CONSERTO. ACABOU. VIROU TRIBUNAL POLÍTICO. SEUS MEMBROS RASGARAM A CF COMPLETAMENTE. CAGAM NO POVO.

  4. Gosto da ideia do mandato fixo de 8 anos. Os indicados são políticos e nada têm de notório saber jurídico. Não têm vergonha de defender teses jurídicas pra agradar seus patrocinadores. O STF de hoje é uma vergonha e só serve pra blindar políticos corruptos

  5. Soluções não faltam, o que falta é vontade de mudar, de lado a lado. Ninguém quer largar uma boquinha dessas e nem desagradar suas santidades.

  6. Acredito que a elevação da idade mínima e o estabelecimento de mandato de 12 anos ajudaria a evitar a atual esculhambação no STF. O maior exemplo de como o atual sistema não funciona foi a atuação descarada de Lewandovski. A prova disso é que ele hoje está defendendo encrencados, viajando com Lula e pensado para ser ministro da Justiça. Ou seja, uma pessoa sectária e sem ética. E foi ministro do STF.

  7. Somente o Congresso? Que Congresso? O Congresso dos Influenciadores digitais? Dos Pastores protestantes? Da Bala? Da Bíblia? Dos maridos, esposas e netos dos antigos oligarcas? Da A imprensa? Que imprensa, a Chapa Branca? A que recebe bilhões de verbas publicitárias do Governo? A Sociedade Civil ? Qual, a OAB? A ABL , da Fernanda Montenegro e do Paulo Coelho? Prezado Duda, seu artigo é excelente, mas alimentar alguma esperança no "Bananão" não é justo. A expectativa é injustiça.

    1. Tb acho. Na prática, de q adianta, por ex., impichar um ministro se o próximo será indicado pelo mesmo presidente enqto estiver no exercício do mandato, caso seja dessa forma q é feito? Num tribunal onde quase todos foram indicados por gente do mesmo partido, q diferença haverá entre uma decisão monocrática e uma de plenário?

  8. Sou a favor da proibição da indicação de qualquer pessoa filiada a partido político, ou de advogado que atue na defesa de políticos ou de partidos. Em se tratando de um tribunal que julga políticos e partidos, acho que é o mínimo pra se ter alguma garantia de imparcialidade.

    1. Mesmo que não seja afiliada a nada, sempre vai ter o rabicho preso com quem indicou.

  9. O fim está próximo. Só nos resta protestar: a oposição convoca uma megamanifestação contra ida de Flávio Dinossauro para o SpTF. Já confirmados em pelo menos 15 estados, os atos deverão acontecer três dias antes da sabatina de Dinossauro no Senado, marcada para o dia 13 de dezembro.

  10. A qualificação técnica também deve ser levado em consideração pois ter gente desqualificada como o Ptoffoli e outros um pouquinho menos desqualificado não é compatível. A condição moral também deve ser tratada pois a promiscuidade está incompatível com a postura que deveriam ter os ocupantes de alto cargo.

    1. Daí não vai ter gente pra indicar, rsrsrsrs. Na real, estamos f… .

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