ReproduçãoJia Zhang-ke, Um Homem de Fenyang, filme de Walter Salles

Cinema e ditadura

Não há intercâmbio cultural possível com um país que censura obras e cerceia a liberdade artística.
20.04.23

Em viagem a Pequim, o presidente Lula anunciou uma série de parcerias com a China. Entre os 15 acordos assinados conjuntamente, está uma parceria estratégica no setor do cinema para estabelecer coproduções entre os dois países, assim como o trânsito facilitado de equipamentos e material.

Você já foi ao cinema para ver algum filme chinês? Eu sou cineasta e nunca fui. Na verdade, fui ver um documentário de um cineasta brasileiro sobre um cineasta chinês que vive tendo problemas com a censura no país, apesar de ter ganhado o Urso de Ouro do Festival de Veneza com o filme Em Busca da Vida. Trata-se de Jia Zhang-Ke, retratado no documentário Jia Zhang-ke, Um Homem de Fenyang, de Walter Salles.

O governo chinês regularmente censura filmes estrangeiros, seja cortando cenas ou desautorizando filmes inteiros a serem exibidos no país. Além disso, os cinemas na China têm forte protecionismo: no ano de 2022, 85% dos filmes vistos no país eram chineses.

Ditadura não combina com cinema, evidentemente. Não faz o menor sentido a parceria firmada com a ditadura chinesa. Não há intercâmbio cultural possível com um país que censura obras e cerceia a liberdade artística.

As ditaduras costumam instrumentalizar a produção artística. Tudo termina, de uma forma ou de outra, virando propaganda do regime. É assim desde o Realismo Socialista, a estética oficial comunista implantada por Stalin para guiar toda a produção artística do país. O Realismo Socialista se parece muito com a estética oficial nazista: o culto ao líder, as grandes manifestações de massa, a instrumentalização das formas clássicas, a arte figurativa (a recusa ao abstracionismo) e o próprio realismo.

Na definição de Aleksandr Gerasimov, o Realismo Socialista é realista na forma e socialista no conteúdo. Ou seja, deve passar uma mensagem clara, acessível ao povo. A mensagem é a afirmação do triunfo do socialismo, o culto à padronização e a coletividade, e por aí vai. O Realismo Socialista não se insere na história da arte mas na história da propaganda. Até hoje, o Realismo Socialista está em voga na Coreia do Norte, por exemplo. E tem influência em vários países comunistas, inclusive em Cuba e na China.

Nas faculdades de cinema, especialmente no Brasil, o cinema soviético tem grande destaque. É que, nos primeiros anos da URSS, as vanguardas artísticas tiveram um alvorecer tanto no cinema, quanto na literatura, nas artes plásticas, e até no design, artes gráficas etc. Lênin afirmou que, de todas as artes, o cinema é a mais importante, e criou o Ministério do Cinema – um ministério separado do da cultura.

Mas a partir dos anos trinta iniciou-se todo tipo de censura e perseguição a artistas. Muitos foram mortos ou tiveram que deixar o seu país. O Realismo Socialista esteve em voga oficialmente até a morte de Stalin, em 1953. O primeiro filme pós-realismo socialista é O Quadragésimo Primeiro, de Grigori Chukhray, lançado em 1956. Depois disso veio o chamado “degelo”, quando aconteceu uma certa abertura no controle à produção artística na URSS. Mas o Realismo Socialista teve influencia até o fim do período soviético. E durante todo esse período os artistas precisavam fazer faculdade na sua respectiva área e pertencer a uma associação de classe, que era controlada pelo governo e formalmente ligada ao ministério.

Andrei Tarkóvski, que nasceu na época de Lênin, viveu sua infância no período stalinista, teve a sorte de começar a produzir cinema na época do degelo. Não foi fácil, entretanto. Apesar do grande destaque internacional de suas obras, ele teve a oportunidade de se utilizar da burocracia estatal soviética para fazer seus filmes, mas com imensos empecilhos: seus projetos demoravam anos para serem aprovados, ficavam retidos pela censura, que sugeria alterações. Já no final da vida ele se exilou na Itália, mas teve que ficar separado da esposa e do filho, e só pôde vê-los quando estava com câncer no leito de morte.

O cineasta oficial do regime soviético na época de Tarkóvski era Sergei Bondarchuk, que fez uma das maiores produções da história do cinema, uma adaptação de Guerra e Paz de Tolstói. Bondarchuk teve à disposição dezenas de milhares de soldados, canhões reais, o acervo de mais de 40 museus, e fez um filme de mais de sete horas. Acontece que nenhum filme de Bondarchuk teve a influência de Tarkóvski na história do cinema. A arte oficial nunca superou o cinema de autor no país do Realismo Socialista. Mas o caso de Tarkóvski é uma exceção: cinema não combina com ditadura.

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista, escritor e fotógrafo

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  1. O artigo prova que o PT e as Esquerdas brasileiras não gostam de democracia e sim de ditadura, toda a liberdade para falar o que ELES querem dizer, para o resto é a mordaça, a regulação, como queiram chamar.

  2. O que será que pensam Cacá Diegues, Marieta Se ero, Wagner Moura, Lazaro Ramos, Matheus Nachtergale, Kleber Mendonça, Karim Anouz, João Miguel, Gregorio Duvivier, e tantos outros cineastas e artistas de esquerda sobre o assunto??

  3. Um dos textos mais lúcidos que já li na Crusoé. Parabéns Josias Teófilo. Cinema combina com liberdade e não deve ser utilizado como instrumento de doutrinação e sob censura. Mas, infelizmente, o cinema nacional já está nesse viés torto de doutrinação há anos. Esse acordo foi para juntar a fome com a vontade de comer.

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