Reprodução/redes sociaisEnrique Krauze: Não invejo o Brasil pela escolha que provavelmente terá de fazer nas eleições deste ano

A política não é redentora

26.08.22

O mexicano Enrique Krauze, de 75 anos, começou sua trajetória intelectual na célebre revista Vuelta, ao lado do poeta e ensaísta Octavio Paz, um dos grandes nomes da literatura do século XX em língua espanhola. Hoje, o próprio Krauze é uma referência para as discussões políticas e culturais no México e outros países da América Latina. Sua formação é de historiador. Mas, na tradição de Paz, ele também dirige a revista Letras Libres e a editora e produtora Clio.

Dois livros da extensa obra de Krauze foram publicados no Brasil. Redentores reúne onze perfis de personagens emblemáticos da América Latina, como José Martí, Eva Perón e Gabriel García Marquez. O Poder e o Delírio é uma compilação de escritos sobre o venezuelano Hugo Chávez e sua revolução bolivariana. Seu livro mais recente, ainda sem tradução brasileira, chama-se Crítica al Poder Presidencial. É uma história da presidência mexicana desde a década de 1980, com foco especial no atual ocupante do cargo, Andrés Manuel López Obrador. Opositor ferrenho de AMLO (a sigla pela qual os mexicanos se referem ao presidente), Krauze diz que ele representa de forma acabada um dos principais flagelos da política contemporânea: o populismo. Leia abaixo a entrevista:

O senhor escreveu, em 2018, que o Brasil estava “prestes a cometer um suicídio político e cultural elegendo Bolsonaro”. Quatro anos depois, parece-lhe que aquele diagnóstico foi correto?

Poucas coisas me tiram o sono como o populismo. E vejo em Jair Bolsonaro traços muito fortes da liderança populista: o estilo duro, o uso agressivo das ferramentas de comunicação, a divisão do mundo entre bons e maus. No governo, ele confirmou algumas das piores expectativas. Agiu de maneira terrível na pandemia e feriu o meio ambiente, sem entender a urgência da questão climática. Em tudo isso, aliás, ele é muito semelhante ao presidente mexicano López Obrador. O que mostra que o populismo não distingue ideologias. Mas não foi correto falar que o Brasil, como um todo, estava à beira do “suicídio político e cultural”. Acabei contrariando a opinião que eu mesmo tenho sobre o país. Em contraste com o México, vejo no Brasil uma intensidade maior de debate, mais pluralidade, um tanto mais de liberdade e anarquia. Uso essa palavra, anarquia, em sentido positivo, para apontar uma desconfiança saudável em relação ao poder.

No livro El Pueblo Soy Yo, o senhor usa uma frase de Hugo Chávez para resumir a mentalidade dos líderes populistas: “Eu já não sou Chávez, sou um povo”. Pouco antes de ser preso, em 2018, Lula disse aos seus apoiadores: “Eu já não sou Lula, sou uma ideia”. Lula não é também um populista?

Muitos anos atrás, José Guilherme Merquior, o diplomata e grande intelectual brasileiro de quem fui amigo, apresentou-me a José Sarney. Guardei na memória uma frase daquela conversa: “Lula sabe quanto valem 3%”. Sarney quis dizer com isso que Lula entendia a política, sabia dialogar e fazer acordos, era alguém mais pragmático que ideológico. Ao contrário dos caudilhos, a quem só interessa um número, 100%. Ainda vejo um pouco disso em Lula, mas as histórias de corrupção, para manter o seu partido no poder, a condescendência com os ditadores de esquerda, além de atitudes e frases como a que você mencionou, mostraram que a veia populista sempre esteve presente, eu é que não havia enxergado. Não invejo o Brasil pela escolha que provavelmente terá de fazer nas eleições deste ano.

Os países da América Latina são especialmente vulneráveis ao populismo?

É preciso fazer distinções. O Chile, por exemplo, tem 200 anos de tradição republicana. Ela às vezes foi eclipsada, como no governo Pinochet, mas nunca foi inteiramente sufocada. Não vejo a cultura caudilhista enraizada no país. Não creio que a nova constituição, que tem traços autoritários, vá ser aprovada pela população. E também não vejo com preocupação a eleição de Gabriel Boric. A esquerda voltou ao poder? Isso é parte do jogo. O processo eleitoral que o levou à presidência foi exemplar. Seu adversário reconheceu rapidamente os resultados, que foram contundentes, e Boric prometeu governar para todos os chilenos. Ele se distanciou da esquerda ditatorial de Cuba, da Venezuela, da Nicarágua. Espero que não busque inspiração no México.

Qual é o caso do México?

O México é como uma pirâmide asteca. É uma estrutura pesada, centralizada, com muitos degraus hierárquicos. O presidente, no México, sempre teve a aura de um monarca. Ouvi de um amigo que o México é o país mais parecido com a China na América Latina. É uma boa imagem. Por setenta anos, tivemos uma espécie de partido único, como os chineses: o PRI. Ao longo do tempo, houve  alguns lampejos democráticos. Por exemplo, no final do século passado, quando o país finalmente conseguiu desalojar o PRI do poder e arejar o ambiente. Mas não durou muito. O PRI retornou com a eleição de Enrique Peña Nieto, em 2012. Como presidente, ele era um excelente jogador de golfe, o esporte que adorava. Peña Nieto era corrupto, irresponsável e, ao final, covarde. Por razões até hoje obscuras, ele abriu caminho para que nosso atual mandatário chegasse à presidência, usando a Justiça para atacar incessantemente o seu principal adversário nas eleições de 2018. López Obrador estava à espreita havia muito tempo. Ele foi do PRI, disputou eleições. Com a preciosa ajuda de Peña Nieto, chegou finalmente ao poder e, com isso, o México abraçou o populismo.

Nelson Toledo/Flip

Seu novo livro, Crítica do Poder Presidencial, qualifica o governo de López Obrador como “destrutivo”. Como ele afetou a democracia mexicana em particular?

Lopez Obrador tem um programa de televisão de três horas, que vai ao ar todos os dias da semana. Ele o utiliza para exaltar a si próprio e atacar seus adversários. Alguém fez as contas no outro dia e observou que eu mesmo já fui atacado 234 vezes nesse programa. Perto disso, Hugo Chávez era um lorde inglês: tinha o bom gosto de só ocupar a televisão aos domingos. Como se não bastasse, o presidente tem um exército orwelliano nas redes sociais, financiado com dinheiro público. Eles o ajudam a massacrar a oposição e desmoralizar os meios de comunicação, que se defendem como podem. Como os caudilhos não gostam de instituições, AMLO, como também o chamamos, fez o possível para desarticular as instituições mexicanas ou corrompê-las. Por isso tivemos tantos mortos durante a pandemia e o número de homicídios hoje atinge picos históricos. O Judiciário ainda é um importante foco de resistência. Mas um bom exemplo de instituição desvirtuada pelo seu governo é o Exército. Tínhamos um Exército pequeno, que nunca exigiu muitos recursos, dedicado basicamente a tarefas de defesa civil e muito querido pela população. Lopez Obrador lhe deu empresas, obras e aeroportos para administrar e o trouxe para o centro do palco, de uma maneira inédita.

Tem medo que ele tente estender o seu mandato em 2024?

As eleições de 2024 são preocupantes. Não podemos dizer com certeza que haverá plena liberdade de votação. Como disse certa vez Mario Vargas Llosa, “não há limites para a deterioração”. Mesmo assim, não vejo a possibilidade de uma extensão de mandato para López Obrador. Ele simplesmente vai fazer tudo que estiver ao seu alcance para eleger um preposto e continuar no comando.

Como combater o populismo?

Estaremos sempre às voltas com o populismo enquanto nossos países não entenderem o valor da vida democrática parlamentar. Tenho estudado a obra do alemão Max Weber. Em 1919, ele fez, em Munique, a sua célebre conferência sobre a política como vocação. A plateia era formada por jovens anarquistas e comunistas que não se contentavam com nada menos que transformar completamente a realidade. Em vez de incentivá-los, Weber lhes disse que a política era “um rude e lento parafusar de tábuas duras”. A política não é redentora, não salva a humanidade nem leva à felicidade eterna. Devemos pedir a ela soluções sensatas para a economia, para a educação, para a saúde. E isso já é bastante.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. No Brasil o populismo não é uma agenda somente do executivo, mas de todos os poderes republicanos, nas três esferas. Ou seja, vida longa ao Terceiro Mundo e aos muitos que enriquecerão usurpando legalmente a riqueza do povo, por que isto que importa como projeto de país.

  2. Excelente entrevista, principalmente pelos comentários sobre o México e seu presidente, que desconhecia.

  3. Tal como Vargas Lhasa e como bom discípulo de Otávio Paz, o autor nos da uma verdadeira aula sobre o populismo presidencialista da América Latina. Penso que só com um parlamentarismo baseado no voto distrital conseguiremos sair deste determinismo histórico na região

    1. De pleno acordo! Presidencialismo é messianismo, culto à personalidade, subserviência, complexo de inferioridade, capaxismo. Parlamentarismo é o sistema das democracias mais prósperas e evoluídas do planeta. Infelizmente o jornalismo nacional, incluindo a CRUZOÉ, imediatista, não discute isto em profundidade, limitando-se a ser um "muro das lamentações"...

    2. Concordo plenamente. Presidencialismo = semiditadura = messianismo = culto à personalidade = lixo, não é bom nem nos USA. Historicamente é o caminho mais rápido para ditaduras. Presidencialismo foca no arbítrio de uma única pessoa, que pode mudar no dia seguinte às eleições. É democracia escolher periodicamente um ditador de difícil remoção? Meu protesto contra a CRUZOÉ e o jornalismo imediatista que não discute parlamentarismo, voto distrital, candidaturas independentes, etc...

  4. Ele, realmente, não conhecia o bigode de graúna do Maranhão. Os 3% citados são os, futuramente, de Cerveró, Duque, Paulo Roberto Costa e compunham a previsão, tragicamente confirmada, de que o larápio, em breve, aprenderia o que são 30 %.

  5. ele não entendeu nada da frase “lula sabe quanto valem os 3%”… alguém diz pra ele aí q era os 3% da propina cobrada d todos os contratos…

  6. Uma clarissima definição do populista. Sempre tentando solapar as instituições, combatendo a imprensa independente e se apresentando como a solução. E culto à personalidade.

    1. Concordo. O populismo é a mentira na política e a mentira não constrói nada de bom. Infelizmente as pessoas adoram uma mentira que divida o mundo em bons e maus e não falta quem se aproveite disso.

  7. Boa entrevista. O México é um país fantástico que, aparentemente, enfrenta problemas semelhantes ao nosso. #nemlulanembolsonaro e #LulaJamais

Mais notícias
Assine agora
TOPO