Carlos Fernandodos santos lima

Aras e a destruição do Ministério Público de 1988

20.08.21

“Enquanto houver bambu, vai ter flecha!” Assim Rodrigo Janot, então procurador -geral da República, definiu seus últimos dias de mandato na chefia do Ministério Público Federal. Ainda nessa declaração de setembro de 2017, Janot reiterou os termos de sua denúncia contra o então presidente Michel Temer, ocorrida meses antes: “Faria tudo de novo”.

Agora, nem ainda completados quatro anos dessas declarações, vemos um outro PGR, Augusto Aras, envergonhar a instituição ao ser chamado à responsabilidade por ministros do Supremo Tribunal Federal e ser objeto de pedido de investigação por senadores diante de sua contínua inação e pouca disposição a cumprir seu papel constitucional. O que aconteceu entre o hiperativo Rodrigo Janot, responsável pela constituição da Operação Lava Jato, o acordo com a JBS e denúncia de um presidente, dentre tantas coisas, e o achincalhado Augusto Aras, colocado na imprensa como o “poste-geral da República”?

Para ser justo com o atual “far niente” de Augusto Aras, o seu comportamento submisso aos interesses políticos é historicamente o mais comum. É só lembrar de outro procurador-geral famoso por um epíteto também pejorativo, o “engavetador-geral da República” Geraldo Brindeiro, que ficou à frente da PGR durante os oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso, sem nunca incomodar seu “patrono”, mesmo diante de sérias notícias de irregularidades nas privatizações e na própria tramitação da emenda constitucional da reeleição.

Outros exemplos existem, bastando voltar um pouco no passado, ainda no final da ditadura militar, quando o então PGR Inocêncio Mártires Coelho também foi acusado de omissão em sua atuação, chegando a ser formada comissão no Senado Federal para decidir se aquele PGR deveria ser julgado por deixar de investigar o escândalo de simulação de concurso público no Tribunal Superior Eleitoral.

Os males, entretanto, que um procurador-geral da República em desconformidade com a grandeza de seu cargo pode causar vão bem além de omissões. Inocêncio Mártires Coelho, por exemplo, foi acusado pela imprensa de ter-se empenhado em defender na Justiça a fidelidade partidária no Colégio Eleitoral — o que impediria o apoio de parlamentares governistas ao candidato oposicionista, Tancredo Neves.

Além disso, Inocêncio Mártires Coelho, talvez na maior mancha de seu mandato, em vez de apoiar o procurador da República Pedro Jorge de Melo e Silva nas investigações de crimes em financiamentos agrícolas do Banco do Brasil em Pernambuco, conhecido como “escândalo da mandioca”, determinou o seu afastamento das investigações. Pedro Jorge foi assassinado por envolvidos nesses crimes um dia após essa determinação.

Esse covarde homicídio orientou muito da construção de um novo Ministério Público na Constituição de 1988. O poder do procurador-geral da República para intervir em investigações e afastar procuradores – igualmente em relação aos Ministérios Públicos estaduais – desapareceu. O Ministério Público que emergiu da redemocratização foi um órgão muito mais independente e dinâmico, mas que novamente agora está sob ataque.

O que vemos com Augusto Aras, secundado nisso por seus ambiciosos sequazes, o vice-PGR Humberto Jacques e a subprocuradora Lindôra Araújo, é uma atuação muito mais próxima daquela PGR do fim da ditadura do que da singela omissão de Geraldo Brindeiro. Aliás, não poderia se esperar algo diferente de um advogado que fazia “bico” como procurador da República, pois Augusto Aras representa justamente o velho Ministério Público Federal, aquele que, além de poder advogar, ainda agia e pensava como advogado do governo.

O que acontece hoje é uma mistura de omissão em relação à investigação dos diversos ataques antidemocráticos e da política genocida em relação à pandemia, ambos os fatos relacionados direta e indiretamente ao presidente Jair Bolsonaro, e um ativismo contra prefeitos e governadores, objeto de ódio dos grupos bolsonaristas, bem como contra a independência dos procuradores da República, ajudado nisso por um Conselho Nacional do Ministério Público desfalcado e com membros escolhidos a dedo pela classe política.

Será que esse tipo de dualismo oportunista é uma característica da função do procurador-geral da República, ou é uma deformação da atuação de alguns deles por suas características pessoais? Certo é que a concentração de poder ainda existente na função de procurador-geral acaba por levar a uma excessiva dependência do caráter e personalidade do escolhido para o cargo. Isso, por si só, já demonstra um problema do desenho constitucional desse órgão. Diz-se que a melhor maneira de se descobrir o real caráter de um homem é lhe dar poder, mas, em uma República, nenhum poder é incontrastável.

Afirma-se também que nenhum outro cargo na República desempenha tamanha quantidade de funções, e, se isso pode não ser completamente verdade, é certo que a chefia do Ministério Público da União e do Conselho Nacional do Ministério Público, a exclusividade da ação penal pública contra detentores de foro privilegiado, a atribuição de propor ações constitucionais perante o STF e ainda a necessidade de seu parecer nas ações diversas que tramitam nesse tribunal já são um trabalho hercúleo mesmo para o mais capacitado dos mortais.

Infelizmente, nem capacidade, nem grandeza pessoal são características de Augusto Aras, mas há problemas intrínsecos ao cargo que vão bem além dele.

É indiscutível que o desenho constitucional do Supremo Tribunal Federal e da Procuradoria Geral da República foram hipertrofiados, no decorrer da Nova República, em virtude do foro privilegiado, dos habeas corpus saltitantes e das ações constitucionais, fazendo que o excessivo poder sem controle ficasse concentrado nas mãos de poucos. Enquanto a função do PGR, como já dissemos, ficou dependente em excesso das virtudes e desvirtudes da pessoa do escolhido para o cargo, a monocratização das decisões do STF também levou ao mesmo fenômeno.

Esse excesso de poder incontrastável foi logo percebido pela classe política, especialmente pelo presidente da República, como um fator que deveria ser controlado por uma escolha de pessoas com interesses alinhados com o poder. Assim, podemos ver que FHC escolheu para o STF o nefasto Gilmar Mendes, seu subserviente advogado-geral da União. Lula, por sua vez, escolheu “in pectore” os não menos inapropriados Lewandowski e Toffoli, este último seu advogado eleitoral. Agora, já neste governo, a escolha recaiu em um apadrinhado do Centrão, Kassio Marques, enquanto o advogado de interesses autoritários de Jair Bolsonaro, André Mendonça, aguarda a sabatina para a vaga decorrente da aposentadoria do Ministro Marco Aurélio.

Se o processo de destruição do conceito de reputação ilibada e notório conhecimento jurídico vem se exacerbando há muito na escolha de ministros do STF, com honrosas exceções, a Procuradoria Geral da República vinha sendo protegida dessa decadência por conta da escolha de membros da carreira para o cargo e pela aceitação, pelo chefe do Executivo, da lista tríplice de indicados pela classe. Infelizmente, a quebra dessa tradição resultou no desqualificado Augusto Aras.

Colocado ali por Jair Bolsonaro, atendeu servilmente o desejo do presidente de acabar com a Operação Lava Jato. Até aí agiu com os aplausos de boa parte da classe política, do Centrão, dos caciques que dominam o Congresso Nacional e da esquerda petista. Entretanto, tão logo a agenda golpista e antidemocrática do presidente se tornou evidente, Augusto Aras se recolheu à função que sabe fazer melhor, ou seja, absolutamente nada em relação aos diversos crimes cometidos pelos bolsonaristas, delegando o ativismo para os subprocuradores Humberto Jacques e Lindôra Araújo.

Fica claro, com tudo isso, que temos que repensar diversas questões a respeito da escolha e do mandato dos ministros do Supremo Tribunal Federal, bem como da constitucionalização da lista tríplice e do controle sobre o excessivo poder do procurador-geral da República – para não dizer também das diversas questões similares de excesso de poder dos ministros do Tribunal de Contas da União e do presidente da Câmara dos Deputados.

É bom que se diga que os paradigmas constitucionais de outros países para esses cargos não atribuem o poder que seus derivados aqui possuem. No Brasil, a função de acusar o presidente da República e parlamentares é entregue com exclusividade a uma pessoa normalmente escolhida pelo próprio chefe do Executivo e sabatinada pelos senadores. Nos Estados Unidos, esse tipo de investigação fica tradicionalmente sob responsabilidade de um promotor independente, escolhido para o caso. Não fosse só isso, existe ainda a manipulação da ambição de alguns pelo cargo vitalício no STF. Aí está a receita perfeita para um desastroso “procrastinador-geral da República”, ou pior.

O Ministério Público que surgiu na esteira da Constituição Cidadã de 1988 é aquele preconizado por Ulysses Guimarães: “Não roubar, não deixar roubar, colocar na cadeia quem roube”. É uma instituição que deveria estar na frente de batalha da defesa da democracia e dos princípios republicano e federativo, e não defendendo os interesses políticos de quem quer que seja. Esse Ministério Público independente pode ser acusado – e será sempre acusado pelos defensores dos interesses ilegítimos e criminosos – de desferir muitas flechadas, mas agir é a essência do seu trabalho. Assim, jamais se achará justificativa para um procurador-geral da República que prefere quebrar o arco e apenas fumar seu cachimbinho da paz com quem transgride a lei e ofende a Constituição. Esse não é o Ministério Público da redemocratização.

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