Eduardo Anizelli/Folhapress“Parece que existe mesmo uma intenção do governo de acabar com a educação e com a cultura”

‘Somos espectadores tristes e roubados’

O ator Antônio Fagundes explica por que decidiu não mais usar seu prestígio para pedir votos em campanhas eleitorais e lamenta a condição dos brasileiros diante do circo da política
19.02.21

No já longínquo ano de 1989, a novela Vale Tudo escancarou a corrupção no país. Na antológica cena final, um empresário envolvido em desvios foge para o exterior e, do alto de seu jatinho, dá uma banana para o Brasil. Um dos protagonistas da trama, Antônio Fagundes vê poucas mudanças na cena nacional desde então. “Ainda tem muito político dando banana para os brasileiros, mas agora é pior: eles nem precisam mais sair do país, eles dão aqui mesmo, na cara dura”, diz o ator nesta entrevista a Crusoé. “Eles comandam esse circo do qual somos espectadores tristes e roubados.” Aos 71 anos, o ator é uma das figuras mais respeitadas da televisão brasileira, mas a pandemia acelerou um processo de reinvenção profissional iniciado antes da chegada do vírus. Durante a quarentena, ele escreveu um livro em que dá dicas de literatura para inspirar novos leitores, emprestou a voz para um audiobook e concluiu roteiros para séries e filmes, que serão rodados tão logo venha a vacinação em massa. “A forma de nos comunicar está sendo redescoberta”, anima-se.

Fagundes não participa de campanhas políticas desde 1989, quando gravou vídeos de apoio ao então candidato petista Luiz Inácio Lula da Silva. “Eu não tinha poder nenhum quando os candidatos que eu ajudava a eleger cometiam algum malfeito, então decidi não mais ajudar a colocá-los em cargo nenhum”, explica. Embora procure se manter longe das disputas eleitorais, o ator da Globo não se exime de tecer críticas aos poderosos de plantão. As queixas do governo de Jair Bolsonaro são muitas, a começar pela área cultural. Ainda assim, Fagundes não se alinha a muitos de seus colegas de profissão que, pelo conjunto da obra, defendem a saída do presidente do cargo: “O impeachment deveria ser o último recurso, porque está ficando muito fácil: coloca o cara lá, se não der certo, a gente tira. Não pode ser assim. Sempre achei uma fórmula muito simplista de resolver os problemas”. Eis os principais trechos.

A pandemia atingiu duramente o setor cultural, com o fechamento de teatros e salas de cinema e a perda de renda de boa parte dos artistas. Como deve ser o cenário pós-pandemia?
É preciso que se diga que a cultura já vinha sofrendo antes da pandemia uma indicação de desmanche. A Ancine (Agência Nacional do Cinema) e as liberações da Lei Rouanet estavam paralisadas. A classe foi demonizada, como se fôssemos ladrões mamando nas tetas do governo, e a gente sabe que não é assim. As indústrias automobilísticas têm muito mais subsídio do que todos os projetos culturais juntos. A gente percebeu isso mais claramente com a saída da Ford do Brasil. Eles estão saindo justamente porque os subsídios pararam. A classe cultural jamais parou, mesmo sem subsídio. A gente ainda existe por conta da força da classe, dessa turma que arregaça a manga e luta para preservar a cultura e a educação no país. Esse desmanche já estava claramente acontecendo e a pandemia foi só a pá de cal nessa estrutura tão prejudicada. Parece que existe mesmo uma intenção do governo de acabar com a educação e com a cultura. É como um projeto de governo.

A Lei Rouanet é alvo de críticas do presidente Jair Bolsonaro desde a campanha. Há casos de irregularidades comprovadas, mas também muita generalização. A lei será importante na recuperação do setor após a pandemia?
Este é sempre um problema no Brasil: quando a gente descobre alguma falha, em vez de resolver aquilo e manter as coisas boas que existiam naquele setor, a gente acaba com o segmento inteiro. É uma tendência do Brasil não conseguir resolver os problemas pontualmente. Isso vem de séculos, a gente generaliza sempre. Se houve algum mau uso da Lei Rouanet, se houve alguém que abusou, que essa pessoa seja penalizada. Mas a lei é absolutamente imprescindível, a cultura só sobrevive no mundo inteiro se houver subsídios governamentais. A gente deveria ter uma política de estado para a cultura, e não uma política de governo. Cada vez que um governo muda, a cultura sofre porque a política governamental é diferente e não existe cultura que resista a mudanças a cada quatro ou oito anos. O Museu do Louvre estaria fechado há muito tempo se não houvesse uma política estatal para manter aquela estrutura. Por que o Louvre é mantido tão brilhantemente, com acervo extraordinário, e rendendo para o governo francês milhões e milhões de euros anualmente? Porque essa é uma política de estado. Os governos que quiserem acabar com a cultura vão conseguir fazer isso fechando os cofres e dificultando ainda mais o exercício das profissões. Por ação ou por omissão. Ou, às vezes, os dois.

De que maneira esse longo período de quarentena mexeu com a sua vida pessoal e impactou na sua forma de trabalhar e de ver o mundo?
A gente tem o costume de trabalhar com aglomeração, com 700 pessoas na plateia. Por isso, o teatro foi um dos mais atingidos. Essa aglomeração é justamente o que faz a arte teatral viver, a energia vital da plateia. O teatro sofreu muito, assim como o cinema e a televisão. Então, o nosso dia a dia foi bem atingido. Mas a gente descobriu outras formas de comunicação e conseguiu seguir. Eu, particularmente, não parei de trabalhar 2020 inteiro. Escrevi um livro, fiz um audiobook para a Companhia das Letras, continuei produzindo a minha peça que, infelizmente, teve que sair de cartaz, mas a produção continua demandando trabalho. A gente fechou roteiros para séries e para longas-metragens que vamos filmar assim que a vacina sair, e há novelas em andamento. A coisa não parou totalmente, mas a forma de nos comunicar está sendo redescoberta.

Produtores de teatro e cinema temem que os efeitos sejam mais duradouros para esses setores, já que muitas pessoas tendem a seguir com medo de aglomerações mesmo após a vacinação. Acredita que serão necessárias medidas específicas para esses segmentos?
A gente sabe que haverá um tempo de recuperação ainda muito grande pela frente, particularmente no teatro. No cinema, é possível ter recuperação mais rápida se os frequentadores mantiverem alguma distância, com uso de máscara. Ainda é possível fazer um filme ou uma novela com menos alcance da vacina. O teatro, não. Não só pelos atores e pela equipe técnica, mas pela presença do público. Eu acho que nenhum colega gostaria de saber que está provocando talvez um avanço da pandemia ao reunir 700 pessoas em um teatro. Então, vamos ter que esperar realmente a vacinação em massa para que o teatro retome. Ele vai ser o mais castigado.

Eduardo Anizelli/FolhapressEduardo Anizelli/Folhapress“Ainda tem muito político dando banana para os brasileiros, mas agora é pior: eles nem precisam mais sair do país, eles dão aqui mesmo, na cara dura”
Acredita que o governo possa fazer algo?
Eles vão falar: “Salvar o quê? Do que está falando? Teatro? Nunca ouvi falar nisso, não quero saber”. Faz 2.500 anos que o teatro está morrendo e ninguém consegue enterrá-lo. Ele continua vivo, vai ser muito difícil acabar com o teatro. De qualquer forma, a gente sabe que não virá auxílio nenhum, pelo menos deste governo. E nem dos próximos, se essa política não se transformar em algo de estado. Quando a gente fala de cultura em um país de dimensões continentais como o Brasil, a gente está falando de muita coisa. A gente está falando não só de teatro e cinema, mas de (orquestras) sinfônicas, de danças, pinacotecas, de monumentos históricos, do circo, de mamulengo, de Carnaval, de uma série de atividades que são extremamente rentáveis, dão muito dinheiro à sociedade. Quando uma fábrica fecha as portas é uma comoção. Quando paralisam uma atividade cultural, ninguém lamenta ou faz as contas do prejuízo, mas tenho certeza de que se perde muito mais com a ausência de atividades culturais do que com uma fábrica de automóvel fechando.

Nos últimos anos, houve um forte crescimento das bancadas evangélicas nos legislativos, além da eleição de políticos ligados a grandes denominações religiosas em cargos no Executivo. Essa mistura de religião com política influencia as políticas culturais?
Nós sabemos que o sonho dos evangélicos é ocupar os nossos teatros. São os espaços perfeitos para eles. Nós nunca vimos um templo evangélico virar teatro, mas já vimos muitos teatros virarem templos evangélicos. E temos outro problema que é a transformação de governos em templos religiosos. O governo tem que ser laico, tem que ser independente, ele não pode estar a serviço de uma religião. E nós vimos aqui no Rio de Janeiro o que aconteceu com um prefeito que nem com a própria religião se preocupou, porque se fizesse isso não estaria sendo acusado de tanta corrupção.

Existe um movimento antivacina que cresceu diante de questionamentos do presidente Jair Bolsonaro quanto à segurança dos imunizantes. Acha que será possível reduzir essa resistência?
O grande problema do brasileiro é a falha educacional, digamos assim, que há séculos vem corroendo a sociedade. Nós temos estatísticas muito baixas de leitura no país. Se as pessoas não leem, e não digo apenas livros, se não leem jornais, revistas, elas não se informam e se baseiam no que leem em WhatsApp, no Facebook. A gente sabe que as redes sociais são cheias de notícias mentirosas e algumas delas caluniosas. É muito difícil atingir essas pessoas. O Brasil pode ter um problema muito grave com a vacinação porque um número grande de pessoas está caindo nessas mentiras todas. O próprio presidente, no entanto, está começando a se engajar na vacinação porque ele sabe que está perdendo politicamente com essa postura. Algumas campanhas estão sendo feitas nesse sentido e a gente espera que sim, que as pessoas se conscientizem e se informem melhor. É completamente ridículo a gente ver esse movimento (antivacina) em um país que conseguiu erradicar a poliomielite e outras doenças graves pela vacinação. Todo mundo cresceu sendo vacinado, vacinando os filhos.

Quase um ano depois da demissão de Regina Duarte do governo, como vê a passagem dela pela Secretaria de Cultura?
Quando ela aceitou o ministério, eu disse que temia que ela se queimasse. Depois, quando saiu, eu disse que temia que ela se queimasse ainda mais. Por uma razão simples: artista nenhum tem capacidade de gerir aquele ministério. A administração envolve políticas complexas, de distribuição de verbas, é um universo do qual não fazemos parte. Nós fazemos parte da utopia, do sonho, da reforma da sociedade, do progresso intelectual. A gente não consegue entender essas pequenas lutas por papel higiênico no ministério. Qualquer pessoa colocada naquele cargo vai ter que obedecer às ordens do presidente, e sabemos quais são as ordens. Qualquer pessoa que entrar vai acatar essas determinações e vai ficar quietinho no seu canto, que é o que acontece com o atual secretário de Cultura (o também ator Mário Frias). Ele está quietinho no canto dele, que é exatamente o que ele tem que fazer lá. E se quisesse fazer alguma outra coisa, não teria verba. O dinheiro disponível representava 0,6% da dotação orçamentária quando era ministério. Agora, com estrutura de secretaria, é menos ainda. Menos do que o Ministério da Pesca. Um patrimônio cultural do tamanho do Brasil ser gerido com tão pouco, é claro que não vai para a frente, não vai dar certo.

Eduardo Anizelli/FolhapressEduardo Anizelli/Folhapress“Qualquer pessoa que entrar vai acatar as determinações e ficar quietinho no seu canto, que é o que acontece com o atual secretário de Cultura”
O Brasil enfrenta um quadro de penúria financeira em todas as áreas. Qual seria a saída?
Para começar, trocar essa política governamental e transformar a cultura em algo realmente importante para o país. As pessoas dizem que a cultura deve ser a última coisa a ser vista. Não deve. Tem que ser a primeira. É pela cultura e pela educação, que é a propagação da cultura, que se forma uma nação e não um aglomerado. Nós atualmente somos um aglomerado, não somos uma nação. Quem cria essa identidade, essa união, essa unidade é a cultura. É ela que nos representa e que mostra quem nós somos para o resto do mundo. As políticas têm que ser de longo prazo. Você não mantém um patrimônio histórico com uma verbinha durante quatro anos se o próximo governo for contra isso. Você mantém se tiver uma política de estado, uma dotação orçamentária fixa e que mantenha aquele patrimônio ao longo do tempo. Aí você consegue manter um museu, consegue montar uma filarmônica, companhias de dança, bibliotecas. Enfim, faz com que o povo se eduque.

Cresceu neste ano o debate sobre um possível impeachment do presidente Bolsonaro, sobretudo pelas trapalhadas na vacinação. Essa pode ser uma solução para os problemas que o sr. listou?
Eu sempre tive problema com impeachment, desde o (Fernando) Collor. Sempre achei uma fórmula muito simplista de resolver os problemas. É como fazer lipoaspiração. É melhor fazer um regime e não engordar nunca mais do que fazer cirurgia para tirar aquela gordurinha que a gente sabe que volta logo depois. Os problemas voltaram imediatamente depois no Brasil, a corrupção está do mesmo jeito. O impeachment deveria ser o último recurso, porque está ficando muito fácil: coloca o cara lá e, se não der certo, a gente tira. Não pode ser assim. Até porque você tira o presidente e entra o vice, não tem grandes mudanças. A gente precisa tomar cuidado com o desgaste dessa arma que a gente tem, que é o impeachment. Em outros países, essa arma é usada com muito critério, porque é realmente muito poderosa, mas acaba sendo pouco efetiva para a solução dos problemas. Além disso, é pouco representativa da sociedade, porque é resolvida por 500 e poucos deputados, sem a participação do povo. Eu gostaria que houvesse mais consciência e que isso se resolvesse nas eleições. Se o governo deixar que as eleições sejam honestas.

Por que o sr. coloca essa condicionante? Vê algum risco à democracia, alguma chance de golpe?
Ele (Bolsonaro) está plantando, dizendo que eleições vão ser fraudadas, dizendo que é o Exército que manda na democracia, ou seja, está invertendo todos os discursos democráticos. E a gente sabe que aqueles que acreditam na terra plana acreditam em muitas outras coisas.

O sr. fez campanha para Lula em 1989, mas depois se recolheu e não apoiou mais nenhuma candidatura. Foi uma opção pessoal? Receio de prejudicar seu trabalho?
A gente tem muita força ao indicar um candidato, mas depois essa força é retirada da gente porque não somos mais consultados. Então, eu percebi, de 1989 para cá, que eu tinha ajudado a colocar um monte de gente e que depois, quando eu discordava de um monte de coisas, eu não tinha mais poder para tirá-los de lá. Então, achei que não havia um equilíbrio. Eu não tinha poder nenhum quando os candidatos que eu ajudava a eleger cometiam algum malfeito, então decidi não mais ajudar a colocá-los em cargo nenhum, preferi me recolher à minha política de cidadão. Eu voto, acredito na democracia, na alternância de poder, e tenho meu voto. Não é à toa que o voto é secreto.

Eduardo Anizelli/FolhapressEduardo Anizelli/Folhapress“O governo tem que ser laico, tem que ser independente, ele não pode estar a serviço de uma religião”
Nos últimos anos, a TV começou a perder espectadores para novas plataformas na internet e surgiu uma nova forma de consumo de produtos audiovisuais. Como vê esse movimento? O sr. teme pelo futuro da TV ou os dois mundos podem coexistir?
Acho que eles podem coexistir. Novos veículos surgem, mas não destroem o poder e a capacidade de outros já consolidados. Quando a televisão surgiu, o cinema ficou muito preocupado porque era um concorrente direto e não aconteceu nada grave com o cinema a partir do advento da televisão. Eu sinto que a televisão aberta vai fazer muita falta. Ela criava uma relação social que nenhum outro veículo cria. Quando você assistia àquele capítulo de novela, quando você via aquele telejornal, no dia seguinte você tinha a certeza de que todo mundo tinha assistido no mesmo horário, junto com você, àquele mesmo programa. No dia seguinte as pessoas estavam falando daquele assunto e isso criava um consenso social democrático muito interessante. O advento da TV paga trouxe liberdade para o consumidor, você pode ver o jornal na hora que quiser, escolhendo entre 300 e tantos canais aquilo que quer assistir. Mas, no dia seguinte, vai ser muito difícil encontrar alguém que tenha assistido à mesma coisa. A gente perdeu essa relação, essa troca.

Em 1989, o sr. foi um dos protagonistas de Vale Tudo. A novela termina com uma cena antológica, de um empresário corrupto que foge de jatinho e, do ar, dá uma banana para o Brasil. O que mudou desde então? 
Ainda tem muito político dando banana para os brasileiros, mas agora é pior: eles nem precisam mais sair do país, eles dão aqui mesmo, na cara dura. Os escândalos de corrupção não param, e os políticos ainda acham que podem continuar porque não vai acontecer nada com eles, e realmente não acontece. Eles é que comandam esse circo do qual somos espectadores tristes e roubados. A gente teria que descobrir uma fórmula para que isso não voltasse a acontecer. A novela fez muito sucesso na época, mas o país é o mesmo.

Pioramos como nação nessas três décadas?
Sim, pioramos. Nem que seja pelo fato de que, hoje, sabemos muito mais do que sabíamos em 1989.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO